Igor Stravinski.| Foto: Wikimedia Commons
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A guerra é, obviamente, um dos acontecimentos que mais mobiliza as paixões humanas. Daí que, no presente estado de sobressalto causado pela invasão russa à Ucrânia, como é natural, o assunto monopolize todas as atenções. Ainda assim, posto que assumindo o risco da total irrelevância, quero ousar falar de outras coisas. Mas, para não passar por insensível e alienado, e já tratando de improvisar um “gancho” (superficial e forçado como os “ganchos” jornalísticos), digo que a Rússia – que ora parece instituir uma nova etapa histórica no concerto geral das nações – também esteve implicada no ato simbólico inaugural do movimento cultural, político e artístico de que vamos tratar aqui.

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Como sugere o historiador canadense Modris Eksteins, pode-se dizer que tanto a modernidade quanto o modernismo – movimento cultural que lhe deu expressão estética – nasceram no dia 29 de maio de 1913, em Paris. Essa a sua certidão de nascimento, na qual constam como pais os idealizadores e realizadores dos famosos Ballets Russes, notadamente o diretor Serge Diaghilev, o bailarino Vaslav Ninjinsky e o compositor Igor Stravisnky. Ali, naquela data, no moderníssimo Théâtre des Champs-Élysées – um dos primeiros monumentos arquitetônicos a substituir as ornamentais pedras góticas e os apolíneos mármores neoclássicos pelo concreto armado da era industrial –, ocorreu a estreia de A Sagração da Primavera (Le Sacre du printemps), o balé prototipicamente modernista, que provocaria um verdadeiro escândalo de público e crítica.

Concebido por Stravinsky como uma celebração do paganismo, o libreto evocava ritos de fertilidade da Rússia primitiva, girando em torno do tema da imolação ritual de uma jovem inocente, oferecida em sacrifício a um deus pagão da primavera. Graças à morte dessa inocente vítima sacrificial, a natureza (e, por contágio, a história) renascia e revigorava-se – essa a mensagem da obra, na qual dança, música, cenário e figurino eram necessariamente iconoclastas e revolucionários.

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Em seu livro homônimo, obra-prima da historiografia sobre a Primeira Guerra, Eksteins toma aquela première como símbolo condensado do espírito da época, que culminou numa guerra igualmente modernista e sacrificial, por assim dizer, que parecia apostar na morte e na destruição total como esperanças de regeneração espiritual. Nas palavras do autor:

“Este livro fala de morte e destruição (...) Mas, como tal, é também um livro sobre o ‘transmudar-se’. Um livro sobre o aparecimento, na primeira metade deste século [a obra é de 1989], de nossa consciência moderna, especificamente de nossa obsessão com emancipação, e sobre o significado da Grande Guerra, como era chamada antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial, no desenvolvimento dessa consciência (...) Nosso título, adaptado de um balé que é um marco de modernismo, sugere nosso motivo principal: o movimento. Um dos símbolos supremos de nosso século centrífugo e paradoxal, quando na luta pela liberdade adquirimos o poder da destruição final, é a dança da morte, com sua ironia niilista-orgiástica. A sagração da primavera, que foi apresentada pela primeira vez em Paris em maio de 1913, um ano antes da deflagração da guerra, talvez seja, com sua energia rebelde e sua celebração da vida através da morte sacrificial, a oeuvre emblemática do mundo do século 20, que, em sua busca de vida, matou milhares de seus melhores seres humanos. Inicialmente, Stravinsky pretendia dar à sua partitura o título de A vítima”.

Analisando os mais variados relatos sobre aquela efervescente noite de estreia, Eksteins conclui que uma das características essenciais do espírito modernista era o culto à provocação e ao acontecimento sensacional, extravagante, quando a obra de arte passava a incorporar – e, no fundo, a ser indistinguível de – tudo o que lhe fosse acessório, incluindo a própria reação do público, a repercussão midiática, a publicidade do escândalo. Cito o autor mais uma vez:

“Aquela noite tempestuosa se destaca, com razão, como um símbolo de sua época e um ponto de referência deste século. Do cenário no recém-construído e ultramoderno Théâtre des Champs-Élysées, em Paris, passando pelas ideias e intenções dos protagonistas principais, até a reação tumultuosa do público, aquela noite de estréia de Le Sacre representa um marco no desenvolvimento do ‘modernismo’, modernismo como, acima de tudo, uma cultura do acontecimento sensacional, através do qual a arte e a vida se tornam, ambas, uma questão de energia e se fundem numa coisa só”.

A era moderna, diz ainda o historiador canadense, é caracterizada pela completa estetização da existência.

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Menos de década após aquele acontecimento cultural no Velho Mundo, um grupo de intelectuais e artistas brasileiros, sem o mesmo talento que seus consortes europeus, e portando a bandeira de uma irredutível originalidade cultural nacional, trataram de o emular. Em 11 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, começava então a Semana de Arte Moderna, que em 2022 completa o seu centenário, e na qual aquela obsessiva busca por emancipação da qual fala Eksteins atingiu um paroxismo de panfletagem e exagero retórico.

A afirmação de novos ideais estéticos não vinha de chofre. Às vésperas da Grande Guerra, vários modernistas brasileiros traziam da Europa notícias de uma literatura e uma arte em crise. Oswald de Andrade, a face mais panfletária do movimento, conheceu em Paris o futurismo que Marinetti, em 1909, lançara pelas páginas do Figaro no famoso Manifesto-Fundação, e cujo papel formador no imaginário dos fascistas italianos é bem conhecido. E, certamente, todos os nossos dândis modernistas tiveram notícias da première de A Sagração da Primavera, que muito os deve ter fascinado – menos, provavelmente, pelo valor intrínseco do balé que por sua recepção escandalosa.

A segunda noite da Semana, em 15 de fevereiro, foi a mais ruidosa, quando o Teatro Municipal reproduziu fielmente o ambiente do Théâtre des Champs-Élysées. Sim, porque também em São Paulo, todos – artistas, público e críticos – pareciam muito conscientes do papel que deviam desempenhar no evento escandaloso, quase como se seguissem um roteiro. “Na segunda noite – 15 de fevereiro – todos o sabem, o público e os próprios modernistas, que haverá algazarra e pateada. Menotti del Picchia, em seu discurso, prevê que os conservadores desejam enforcá-los ‘um a um, nos finos assobios de suas vaias’” – descreve-a Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira.

“Queremos luz, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte. E que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou anacronicamente, a dormir e a sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena!” – proclama del Picchia do alto do palanque, evocando a estética industrialista e aquele anseio por movimento, não raro inconsequente, tão típicos da revolta modernista.

Na noite do dia 17, o genial Villa-Lobos apresenta-se de casaca, mas calçando chinelos. No ambiente geral de escândalo importado e presumido, o público supôs “futurismo” ali onde havia apenas bolhas nos pés...

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