Ouça este conteúdo
“O regime reprime com mão pesada, mas financia generosamente o desenvolvimento sem precedentes das ciências sociais – e isto durante os anos mais sombrios, de 1970 a 1975. Indigna-se com a politização da SBPC, mas subvenciona seus congressos. Pratica uma censura minuciosa e obscurantista, mas apoia diversos projetos de atividades culturais e artísticas. Rejeita o que vinha do período ‘nacional-popular’, mas se coloca frequentemente como guardião da ‘cultura popular’. Mostra desprezo ou indiferença diante dos protestos dos ‘ideólogos’, mas dá com frequência a impressão de considerá-los os destinatários privilegiados das medidas de abertura. Pouco se dedica a ‘cooptar’ e incentivar uma cultura oficial, mas age também como se fosse impossível destruir todas as redes pelas quais o Estado apoia o desenvolvimento da ciência e da cultura.” (Daniel Pécaut, Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação, 1990)
Durante o governo Médici, o então chefe da Casa Civil – o poderoso, porém discreto, ministro João Leitão de Abreu – encomendou à Universidade de Harvard um estudo que fornecesse subsídios para que os militares brasileiros orquestrassem uma saída honrosa e pouco traumática do poder. O estudo foi realizado e publicado com o título Abordagens da Descompressão Política, e analisava, da perspectiva de quem governa, os possíveis fatores disruptivos que, via de regra, tendem a recrudescer em períodos de desenvolvimento econômico, fatores tais como o incremento da mobilização social e do desejo de participação política, a modificação das relações estabelecidas entre os diversos setores da sociedade, a intensificação das tensões sociais e o aumento das pressões sobre o governo. Como forma de evitar esses riscos à estabilidade social e política, o documento recomendava que o Brasil começasse um processo gradual de descompressão, implementada preferencialmente de modo impessoal e discreto, numa espécie de “descompressão sem descompressor”. O autor do estudo foi ninguém menos que Samuel Huntington, o famoso e influente teórico do “choque de civilizações”.
O que para Golbery e seus acólitos não passava de uma válvula de escape, uma espécie de brinquedo para distrair as crianças enquanto os adultos trabalhavam, para a esquerda era a fenda na qual inserir a banana de dinamite que implodiria o regime
Dentre as autoridades com acesso ao estudo, o general Golbery do Couto e Silva, homem de conhecidas veleidades intelectuais, foi uma das fascinadas. Tanto que, anos depois, viria a incorporar o tema da “descompressão” à sua filosofia político-estratégica. Esse foi, por exemplo, o mote central de sua famosa palestra proferida em 1980 na Escola Superior de Guerra (ESG), na qual o general comparava a história das nações, e a do Brasil em particular, ao ciclo cardíaco, que alterna entre momentos de contração (sístole) e descontração (diástole). Golbery refletia sobre o momento difícil ao tempo do governo Geisel, quando o assim chamado “milagre econômico”, que de algum modo legitimara o regime militar em sua primeira fase, já dava sinais de esgotamento. “Não se pode jogar toda a legitimidade do governo em cima da realização de um bom governo, porque isso é utopia. Porque haverá de chegar o dia em que esse governo não vai funcionar direito” – disse à época, defendendo a tese de que a abertura já deveria ter sido feita durante o mandato de Geisel, de modo a impedir que a sociedade se transformasse numa “panela de pressão”.
Na ESG, o palestrante afirmou que, depois do período “sistólico” iniciado com a tomada do poder em 1964, era imperioso que o regime entrasse numa fase “diastólica”. Nas palavras do general-intelectual: “Em realidade, não nos resta outra opção. Momentos muito mais favoráveis não foram, dantes, aproveitados, por motivos que aqui não nos cabe pesquisar. Mas isso, de qualquer forma, não justificaria o retardar-se ainda mais aquele processo descentralizador, já há muito reclamado como necessário e urgente. Além do que, as pressões contrárias, hoje fortes e quase insuportáveis, voltariam a acumular-se aceleradamente, pondo em risco a resistência de todo o sistema, nessa enorme panela de pressão em que, como já teria sido assinalado em tempos passados, veio a transformar-se o organismo nacional, após década e meia de crescente compressão”.
Foi mirando nessa descompressão que o general julgou por bem entregar a organização da cultura nas mãos da esquerda não armada e “festiva”. E isso porque, num sentido específico, o positivista Golbery entretinha uma visão curiosamente similar à de Antonio Gramsci quanto à impossibilidade da manutenção do poder político via controle exclusivo do aparato repressor do Estado. Daí que o general insistisse tanto na necessidade de que o governo militar criasse novos mecanismos de legitimação do poder exercido. Ocorre que, justo no mesmo período em que o pensamento de Golbery mais exerceu influência sobre os rumos do regime, em meados dos anos 1970, as ideias de Gramsci também começavam a se consolidar na cultura política da esquerda brasileira, que, abandonando gradativamente os projetos de tomada violenta do poder, passavam a ver no controle dos “aparelhos privados de hegemonia” – ou seja, dos sindicatos, das igrejas, das editoras, das redações, da universidade, do show business etc. – a estratégia mais adequada para a ascensão política.
Em certo sentido, portanto, o positivismo golberista foi uma espécie de negativo do gramscismo: o primeiro desprezando a cultura, as artes e a formação do imaginário como esferas puramente ornamentais, secundárias em face da técnica e da ciência; o segundo, ao contrário, vendo nelas o campo de batalha privilegiado da guerra política. Suas respectivas fórmulas, simétricas e inversas, encaixaram-se como chave e fechadura, tendo como resultado a conquista esquerdista do poder cultural, um poder que, apesar de seu menor impacto pontual, gera efeitos profundos e mais duradouros. Com efeito, os militares subestimaram a esquerda festiva justo quando, não só no Brasil como no mundo todo, a “festa” – o experimentalismo, as drogas, a revolução nos costumes, a crítica às tradições, a dissolução da família etc. – convertia-se em arma de guerra. E o que para Golbery e seus acólitos não passava de uma válvula de escape, uma espécie de brinquedo para distrair as crianças enquanto os adultos trabalhavam, para a esquerda era a fenda na qual inserir a banana de dinamite que implodiria o regime.
P.S. Enquanto redigia estas linhas, tomei conhecimento da “réplica a Flávio Gordon” escrita pela minha colega de Gazeta Bruna Frascolla. Ainda que Bruna tenha se precipitado na crítica (uma vez que não aguardou a publicação do artigo de hoje, o qual, conforme anunciado no anterior, dá prosseguimento ao argumento ali iniciado), agradeço-a pela provocação, bem como pela chance de esclarecer pontos eventualmente obscuros e amarrar as pontas soltas de ambos os textos, que, repito, formam um todo. É o que pretendo fazer na coluna da semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos