Ouça este conteúdo
“O analfabeto funcional não é um coitadinho necessitado de ajuda. É um animal perigosíssimo que, justamente por não entender as palavras dos outros, está livre para atribuir a elas o sentido que bem deseje.” (Olavo de Carvalho)
Cumprindo promessa feita no artigo da semana passada, hoje darei continuidade à análise do dossiê organizado por uma mestranda em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a militante psolista Mayara Balestro, cujo objetivo é assassinar a reputação de indivíduos não alinhados à agenda política da extrema-esquerda brasileira, pessoas que o documento estigmatiza como “fascistas”. Em vista dessa meta, e buscando legitimar a sua posição de enunciação, a autora do dossiê apresenta-se obsessivamente como “pesquisadora científica”. Em entrevistas e participações em podcasts, não se vexa falar em nome da ciência (muito embora, provavelmente, não saiba distinguir entre um tubo de ensaio e um galheteiro, como também não sabe diferenciar um termo técnico de um xingamento).
Se, todavia, é mesmo de ciência que estamos falando, trata-se obviamente de uma ciência muito peculiar, desenvolvida talvez no burburinho da assembleia estudantil, em que o pesquisador, privado daquele mínimo de paz de espírito exigido para a contemplação da realidade, prefere unir-se à turba militante e, na contaminação geral de espíritos inflamados, reduzir-se à condição de papagueador de slogans e palavras de ordem. Só isso explica que, ademais de expressar-se num idioma excêntrico, feito de sucessivos ataques terroristas contra a última flor do Lácio, a cientista do PSol cometa erros factuais tão elementares relativos ao seu tema.
Não há no dossiê qualquer tentativa de apresentar uma definição própria e precisa de “fascismo”, e muito menos de justificar, com base numa tal definição, a atribuição da pecha de “fascistas” àqueles assim difamados
Não podia ser diferente: quem tem por horizonte a transformação revolucionária do mundo não há mesmo de perder tempo com a sua compreensão. Que dirá, então, com detalhes menores tais como a correta identificação de seu objeto de estudo? Daí que, por exemplo, Balestro trate o deputado gaúcho Marcel Van Hattem por “governador” do Rio Grande do Sul e, mais de uma vez, refira-se ao advogado Miguel Nagib, fundador do Escola Sem Partido, como Miguel Reale. Quanto a mim, sou curiosamente descrito como “membro permanente” da Brasil Paralelo, muito embora só tenha contribuído com uma única participação nas produções da empresa: uma entrevista concedida por ocasião do primeiro projeto da produtora, o Congresso Brasil Paralelo, realizado em 2016. Desde então, meu suposto vínculo com a Brasil Paralelo resume-se à condição de espectador eventual de suas produções e, claro está, de entusiasta de uma emergente indústria audiovisual que não seja refém da visão de mundo da esquerda revolucionária. Muito pouco para um “intelectual orgânico” da produtora, como Balestro – ela, sim, uma intelectual orgânica gramsciana confessa – pretende que eu seja.
Mas, como adiantei na semana passada, o maior problema é mesmo o uso selvagem que a cientista do PSol faz do conceito de fascismo, uma vez que seu interesse pelo assunto é exclusivamente político-pragmático, não propriamente científico. Não há no dossiê qualquer tentativa de apresentar uma definição própria e precisa de “fascismo”, e muito menos de justificar, com base numa tal definição, a atribuição da pecha de “fascistas” àqueles assim difamados. O mais próximo que podemos encontrar de uma definição não está no documento escrito, mas em falas avulsas de Balestro, nas quais se opera uma verdadeira barafunda conceitual que, se nada nos diz sobre o assunto em tela, muito nos informa sobre o estado de espírito da dita pesquisadora. Vejamos.
Num dos podcasts em que foi entrevistada, por exemplo, Balestro diz que “esse grupo” (ou seja, todos os que ela identifica como membros da Brasil Paralelo) exibe um “discurso fascista” porque busca “a eliminação do outro”. Segundo a militante psolista, isso ficaria muito claro a partir das produções da empresa, que, recusando pretensos avanços sociais, esposam uma visão “tradicionalista” e “romantizada” do passado, manifestação de um sentimento patológico de “medo do novo” e “medo do moderno”.
Esse “medo do novo”, por sua vez, decorreria do catolicismo professado por membros da produtora, fé religiosa da qual Balestro debocha, retratando como coisa escandalosa, por exemplo, a ocasião em que os fundadores da Brasil Paralelo foram entrevistados por um jornal católico, com a presença de – e a autora do dossiê ri nervosamente antes de dizer a palavra – um padre. “Então você fica... Meu Deus! Olha a dimensão disso, desses valores” – extravasa a autoproclamada pesquisadora, para quem a carreira mais adequada fosse talvez no ramo da moda, onde o que vale é estar “up-to date” com as últimas tendências, não no da pesquisa histórica, ponto de vista a partir do qual, segundo Leopold von Ranke, “todas as épocas são iguais perante Deus”. Mas não espanta que, com sua devoção apaixonada ao novo, a pretendente a historiadora jamais tenha absorvido a lição de seu célebre colega alemão.
Só mesmo um completo ignorante em história seria capaz de associar o fascismo a um pretenso apego tradicionalista ao passado ou “medo do novo”
Temos, então, que Balestro identifica vagamente o fascismo com, por um lado, o desejo de “eliminação do outro” e, por outro, com o sentimento de “medo do novo” ou “medo do moderno”. Sobre o primeiro ponto, qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento nota que esse predicado não é exclusivo do fascismo, e que, portanto, não pode servir como elemento de definição. Como escreve Stanley Payne em Uma História do Fascismo (1914-1945): “Fascista tem sido uma das pechas políticas mais recorrentemente utilizadas, normalmente como sinônimo de ‘violento’, ‘brutal’, ‘repressivo’ ou ‘ditatorial’. No entanto, se fascismo não significar nada além disso, provavelmente seria preciso classificar os regimes comunistas, por exemplo, como os mais fascistas de todos, destituindo a palavra de qualquer especificidade funcional”. No limite, aliás, pode-se dizer que o desejo humano de “eliminação do outro” começou com Caim, e não consta que, ali ao tempo do fratricídio primordial, o fascismo já existisse...
Já sobre o segundo ponto, só mesmo um completo ignorante em história seria capaz de associar o fascismo a um pretenso apego tradicionalista ao passado ou “medo do novo”. Ora, sabe-se que o movimento político fundado por Mussolini foi justamente o contrário: um fenômeno essencialmente modernista, consistindo num verdadeiro culto ao novo (e aos jovens), a ponto de ter no futurismo, movimento artístico fundado por Marinetti e Balla, entre outros, a sua maior expressão cultural. “O fascismo é a extensão natural do futurismo” – escreveu Marinetti em 1924, em livro dedicado ao seu “caro e grande amigo Benito Mussolini”.
Com efeito, a característica fascista mais proeminente era justamente o oposto da que Balestro atribui à Brasil Paralelo: antes que “medo do novo”, o que o fascismo nutria – confundindo-se nisso com o marxismo mais ortodoxo – era uma visceral ojeriza ao passado, manifesta frequentemente num desprezo pelos seus representantes fisiológicos naturais, os idosos. “Far largo ai giovani!” (“Abram caminho para os jovens!”) – dizia um slogan fascista dos anos 1930, adaptado na Alemanha nazista por Gregor Strasser: “Macht Platz, ihr Alten!” (“Velhos, saiam do caminho!”). Portanto, Balestro precisa decidir: ou bem a Brasil Paralelo é tradicionalista e tem “medo do novo”, ou bem ela é fascista e cultua o novo. As duas coisas ao mesmo tempo não dá. Seguiremos daí no próximo artigo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos