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“A noção de que alguma vez pregáramos a revolução e a violência deveria ser ridicularizada como um espantalho, refutada como uma calúnia espalhada por reacionários maliciosos. Já não nos referíamos a nós mesmos como ‘bolcheviques’, nem mesmo como comunistas – e o uso público da palavra era agora reprovado dentro do partido. Éramos apenas honestos, humildes e pacíficos antifascistas, defensores da democracia.” (Arthur Koestler, O Deus que Falhou, 1949)
Como expliquei nos artigos anteriores, Mayara Balestro, militante psolista autora do dossiê contra o Brasil Paralelo, utiliza o termo “fascista” como mero xingamento político. O objetivo dessa estratégica retórica – de uso tradicional por parte de comunistas – é desumanizar aqueles que a extrema-esquerda vê como inimigos, com isso justificando quaisquer medidas de força contra eles.
É o que, por exemplo, segundo notícia do jornal Brasil sem Medo, acaba de acontecer com um jovem conservador da cidade de Niterói (RJ), xingado de “fascista” antes de ser brutalmente atingido por uma barra de ferro, golpe que lhe rendeu 14 pontos na cabeça. Eis por que, para responder a um amigo que me havia feito essa pergunta, eu perca tempo com esse tipo de acusação mentirosa. Pois, apesar de vil e intelectualmente grosseira, a difamação não é inócua, visando a preparar o terreno para a violência política. O sentido do estigma é nítido, e equivale a um alvo colocado na testa dos estigmatizados: são “fascistas”; logo, tudo contra eles é permitido.
O objetivo do uso do termo “fascista” como mero xingamento político é desumanizar aqueles que a extrema-esquerda vê como inimigos, com isso justificando quaisquer medidas de força contra eles
Como já disse, o uso do “fascismo” como xingamento é uma longa tradição comunista. Antes de condenados ao paredão de fuzilamento, os ex-camaradas de Stalin eram formalmente acusados de “fascistas” nos processos de Moscou. Sob ordens stalinistas, Ramon Mercader cravou a picareta “antifascista” no crânio do “fascista” Trotski, que, por sua vez, teria feito o mesmo com o “fascista” Stalin caso surgisse a oportunidade. Quando, a partir do fim dos anos 1950, entraram em rota de colisão os dois maiores regimes políticos marxistas-leninistas do planeta, a URSS e a República Popular da China, era “fascista” a principal acusação mútua entre eles.
A manipulação retórica do conceito beneficiara-se do clima de opinião pós-Segunda Guerra, em que, de maneira consensual e ex post facto, as duas metades do campo aliado (o Ocidente democrático e a “Cortina de Ferro”) passaram a descrever a sua participação no conflito como uma “vitória sobre o fascismo” (conceito que abarcava regimes tão distintos quanto os de Mussolini, Hitler e Hirohito). Desde então, a palavra adquiriu o sentido de uma patologia política, sinônimo de barbárie e desumanidade, juízo que muito beneficiou o campo comunista, cuja expertise no manejo acusatório do termo, e no consequente antifascismo autopromocional, vinha de longa data. A força da propaganda e da retórica antifascista era tanta que, como escreve Alan Besançon em A Infelicidade do Século: “Até a queda do comunismo na Rússia, era frequente que as vítimas dos maus-tratos praticados pelos guardas soviéticos os tratassem de ‘fascistas’. Não passava pela cabeça chamá-los por seu verdadeiro nome – comunistas”.
Com efeito, o fascismo nasce de uma rixa no seio do socialismo italiano acerca da participação da Itália na Primeira Guerra, iniciativa rejeitada pelos marxistas-leninistas “ortodoxos” – para quem o agente histórico da revolução socialista deveria permanecer sendo o proletariado internacional – e apoiada por “hereges” como Enrico Corradini, Alfredo Rocco, Luigi Federzoni e o próprio Mussolini, segundo os quais só a nação era um agente histórico revolucionário legítimo. É daí também que, da parte dos “ortodoxos”, surgem as primeiras tentativas de interpretar o fenômeno à luz do materialismo histórico, moldura teórica na qual os fatos eram muito mal acomodados. Tendo nascido no contexto de uma luta política fratricida, essas interpretações iniciais consistiam numa mistura inseparável entre teoria marxista e condenação moral.
Amputando os acontecimentos para acomodá-los forçosamente à Cama de Procusto do materialismo histórico, os comunistas europeus passaram a caracterizar o fascismo, seu irmão bastardo, como um movimento “reacionário”, mero instrumento das classes dominantes – ora descritas como uma “elite agrária”, ora como uma “burguesia industrial”, ora como uma “oligarquia industrial e agrária”, e assim por diante. Obviamente, era impossível acomodar todas essas teses, pois o fascismo não poderia servir a tantos senhores, muitas vezes com interesses antagônicos (sabe-se, por exemplo, que elites agrárias tendem a valorizar políticas de livre comércio, enquanto que os representantes de indústrias nacionais emergentes preferem políticas protecionistas). Logo, fosse realmente apenas um “lacaio” dessa miríade de objetivos conflitantes, dificilmente o fascismo teria sobrevivido.
Para resolver esse impasse teórico, as lideranças da Terceira Internacional decidiram, no início dos anos 1930, por uma única interpretação “cientificamente” correta. Impondo-se sobre as partes divergentes, Stalin estabeleceu a linha partidária oficial: a partir de então, conforme resolução do 7.º Congresso da Terceira Internacional, o fascismo seria caracterizado como uma “ditadura terrorista dos elementos mais reacionários, chauvinistas e imperialistas do capital financeiro”. E é essa interpretação, eminentemente distorcida e politiqueira, que militantes socialistas ignorantes como Mayara Balestro reproduzem até hoje, vendendo como pretensa análise científica o que não passa de retórica política chinfrim.
Tão equivocada era a interpretação stalinista do fascismo que, na Europa do entreguerras, nem mesmo intelectuais marxistas pareciam plenamente convencidos. Para o comunista alemão August Thalheimer, por exemplo, o fascismo tinha de ser compreendido como um fenômeno político novo e autônomo, um movimento de massa surgido em condições econômicas e sociais que escapavam ao controle da burguesia. Por sua vez, Arthur Rosenberg, também membro do Partido Comunista Alemão (KPD), introduziu uma importante mudança na tese-padrão: antes que “reacionário”, o fascismo tivera o papel de fazer avançar as forças produtivas na Itália, promovendo notadamente o desenvolvimento da indústria pesada – química, automotiva e naval. Em vez de esgotar o potencial criativo do capitalismo (como previa a interpretação marxista original), o movimento liderado por Mussolini criara as condições para a sua aceleração. O austromarxista Otto Bauer (um dos primeiros intelectuais comunistas a denunciar o surgimento de uma nova classe dominante na URSS, formada pela cúpula do partido bolchevique) sustentava a opinião de que o fascismo era uma força política demasiado selvagem para ser contida pelas elites estabelecidas. O fascismo “cresceu por sobre as cabeças das classes capitalistas”, escreveu Bauer, para quem a relação entre o fascismo e o grande capital era, no mínimo, muito mais complexa do que afirmara a versão marxista ortodoxa. Franz Borkenau, outro membro do KPD, também negava o caráter “reacionário” do movimento. O fascismo seria, pelo contrário, uma força política, cultural e economicamente modernizadora. Nunca fora um instrumento do capital industrial e financeiro, mas o oposto. Foi o movimento fascista que criou as condições para o desenvolvimento da indústria. Antes que criadores, os capitalistas industriais e financistas foram criaturas do fascismo.
Tão equivocada era a interpretação stalinista do fascismo que, na Europa do entreguerras, nem mesmo intelectuais marxistas pareciam plenamente convencidos
Finda a Segunda Guerra, a fragilidade da versão soviética oficial tornou-se amplamente reconhecida (menos, é claro, para Balestro, seu orientador e seus companheiros de partido). Discretamente, vários intelectuais e políticos socialistas passaram a descartar elementos da ortodoxia, modificando substancialmente o que restou dela. Entre o fim da década de 1960 e o início da de 1970, já havia então uma interpretação marxista do fascismo bastante alterada. Autores como Alexander Galkin, Paolo Alatri, Reinhard Kuehnl e Mihaly Vajda, entre outros, subscreveram basicamente as interpretações de Thalheimer, Rosenberg, Bauer e Borkenau. O fascismo já não era visto como o rebento reacionário de uma “crise terminal do capitalismo”, ou como mero “lacaio do grande capital”. Ao contrário, enfatizava-se o seu caráter autônomo e modernizador (ou, se preferirem, “progressista”). Em alguma medida, o fascismo passava a ser compreendido de maneira mais realista por esses intérpretes: como um movimento político revolucionário.
Fora da intelligentsia marxista, houve uma série de tentativas importantes para singularizar teoricamente o fascismo. Em 1968, o historiador alemão Ernst Nolte estabeleceu uma espécie de mínimo denominador do movimento, consistindo num conjunto de negações, num fundamento central de organização, numa doutrina de liderança e em alguns objetivos estruturais. Esse “mínimo” correspondia a alguns pontos definidores: antimarxismo, anticonservadorismo, valorização da autoridade, uma milícia partidária e o totalitarismo como meta (o famoso “Tudo no Estado. Nada contra o Estado. Nada fora do Estado”).
Em 1992, o historiador italiano Emilio Gentile escreveu um consagrado verbete sobre o fascismo na Enciclopédia Italiana, no qual complexificava o esquema de Nolte, resultando numa densa e sofisticada lista de dez pontos. Na definição de Gentile, o fascismo era:
1. Um movimento de massa cujos membros provêm das mais variadas classes sociais.
2. Uma ideologia “anti-ideológica” e pragmática, que se proclama antimaterialista, anti-individualista, antiliberal, antidemocrática, antimarxista e anticapitalista, e que se manifesta mais estética do que teoricamente, mediante um novo estilo político que cria mitos, ritos e símbolos, como uma espécie de religião secular voltada à criação de um “novo homem”.
3. Uma cultura fundada num pensamento místico, que valoriza a vontade de poder e a juventude como o motor da história, e no ideal de militarização da política e da sociedade.
4. Uma concepção totalitária do primado da política sobre todas as demais esferas da vida social.
5. Uma ética civil fundada na devoção à unidade nacional, na disciplina, na virilidade e no companheirismo.
6. Um partido único responsável por defender o regime, organizar as massas e mantê-las num permanente estado e emoção e fé política.
7. Um aparato policial voltado à repressão da dissidência.
8. Um sistema político organizado numa hierarquia funcional coroada pela figura de um “líder máximo” carismático e cultuado.
9. Uma organização corporativista da economia que suprime a espontaneidade da organização sindical, amplia a esfera de intervenção estatal e busca manter os setores produtivos sob o controle do regime, submetendo-os às necessidades da Realpolitik, mas mantendo em alguma medida a propriedade privada e as distinções de classe.
10. Uma política externa inspirada pelo mito da grandeza nacional, com objetivos de expansão imperialista.
Quando Mayara Balestro e seus camaradas acusam-nos inconsequentemente de querer “eliminar o outro”, o que temos é uma projeção exata de seus próprios anseios políticos, mal disfarçados sob a fantasia virtuosa do “antifascismo”
Em 1995, dando continuidade a essa tradição tipológica, o historiador Stanley Payne inspirou-se em modelo tripartite proposto pelo grande cientista político espanhol Juan J. Linz para chegar a uma definição criterial aplicável a todos os movimentos fascistas do entreguerras, definição que consiste na identificação de a) pontos comuns em ideologia e metas; b) um conjunto de negações; e c) traços compartilhados de estilo e organização. Payne organizou essa tipologia descritiva numa tabela:
A. Ideologia e Metas:
Defesa de uma filosofia idealista, vitalista e voluntarista, envolvendo a tentativa de criar uma nova cultura moderna, autoconfiante e secular.
B. Negações:
Antiliberalismo
Anticomunismo
Anticonservadorismo
C. Estilo e Organização:
Mobilização das massas mediante a militarização das relações sociais, tendo em vista a organização de uma milícia partidária.
Ênfase na estética das manifestações públicas, por meio de símbolos e de uma liturgia política que reforcem as paixões populares.
Ênfase numa ética da masculinidade e numa visão orgânica da sociedade.
Exaltação da juventude, com estímulo ao conflito de gerações como gatilho para grandes transformações políticas.
Valorização de uma liderança autoritária, carismática e personalista, quer tenha sido conduzida ao poder mediante eleição, quer mediante golpe de Estado.
Nessas e em outras tipologias, percebe-se que o fascismo genérico apresenta elementos capazes de situá-lo tanto na direita quanto na esquerda, conforme o entendimento usual desses termos. Os estudiosos citados são praticamente unânimes em apontar, por exemplo, o caráter eminentemente revolucionário, anticonservador e anticapitalista do fascismo. Sendo que, numa tradição que começa com Edmund Burke e passa por líderes políticos como Churchill, Thatcher e Reagan, a direita tem sido associada, entre outras coisas, à contrarrevolução, ao conservadorismo e à defesa do capitalismo liberal, fica difícil compreender a sua identificação imediata e inequívoca com o fascismo.
Se, por outro critério, se opte por caracterizar o pensamento de direita como uma defesa da tradição religiosa cristã contra os “avanços” do secularismo iluminista, sua identificação com o fascismo torna-se ainda mais problemática. Como explica Payne: “A ideologia fascista, diferentemente da ideologia de direita, é na maior parte dos casos secular”. Antes que contrárias ao Iluminismo, as ideias fascistas são “produto de aspectos do Iluminismo derivado especificamente dos conceitos modernos, seculares e prometeicos típicos do século 18”. O autor nota, ainda, que “o esforço para criar uma nova religião civil era fundamental ao fascismo”. E a proposta de uma “religião civil”, convém lembrar, foi inaugurada por ninguém menos que Jean-Jacques Rousseau, patriarca espiritual da esquerda contemporânea.
Por fim, se é possível equiparar conservadores e fascistas sob o critério exclusivo do anticomunismo, seria tanto mais factível equiparar fascistas e esquerdistas com base na partilha de, no mínimo, três traços fundamentais em comum: o impulso revolucionário (ou “progressista”), o anticonservadorismo e o anticapitalismo. Daí que o binômio esquerda-direita talvez não seja a ferramenta mais adequada para compreender o fascismo. Sintomaticamente, aliás, uma das obras de referência sobre o fascismo, de autoria do historiador israelense Zeev Sternhell, intitula-se Nem de esquerda, nem de direita: a ideologia fascista na França.
Como explica A. James Gregor: “Durante grande parte do século 20, analistas dos eventos políticos mundiais têm lidado com os sistemas revolucionários modernos em termos de uma dicotomia esquerda-direita na qual a ‘esquerda’ permanece de algum modo ligada à tradição do Iluminismo, e a ‘direita’ é identificada com uma bestialidade primordial. Quase sempre, o fascismo é descrito como ‘irracional’ e ‘psicopatológico’. Essas caracterizações raramente são empregadas na análise dos regimes marxistas-leninistas, não importa o quão bestiais tenham sido”.
“Há duas coisas que o comunismo fez em escala industrial: denunciar e matar.”
Trecho de A Corrupção da Inteligência.
Com efeito, se o critério fosse a bestialidade política, é fato que Balestro integra uma cultura ideológica totalitária, responsável pela criação de regimes inegavelmente bestiais como a URSS de Lenin e Stalin, a China de Mao Tsé-tung, o Camboja de Pol Pot, entre outros. Assim, quando ela e seus camaradas acusam-nos inconsequentemente de querer “eliminar o outro”, o que temos é uma projeção exata de seus próprios anseios políticos, mal disfarçados sob a fantasia virtuosa do “antifascismo”.
Como escrevi em A Corrupção da Inteligência: “O sentimento de culpa – a famigerada ‘culpa judaico-cristã’, como há trezentos anos maldizem os revolucionários com esgares de nojo – não integra a estrutura de consciência da esquerda, e é isso que faz com que os males políticos por ela cometidos sejam mais profundos e destruidores que os demais. Não por acaso que os comunistas tenham sido, por um lado, os principais formuladores de um discurso de indignação moral contra os males do mundo e, por outro, os maiores perpetradores desses males, brindando a humanidade com um festival de horrores de dar inveja ao próprio Satanás. Há duas coisas que o comunismo fez em escala industrial: denunciar e matar”.
De resto, como já afirmei, a comunista gramsciana terá a chance de provar suas acusações falsas na Justiça.