“O mal de quase todo esquerdista desde 1933 foi ter querido ser antifascista sem ser antitotalitário.” (George Orwell)
Há alguns dias, tive conhecimento de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) que me acusa nominalmente de, na condição de “membro permanente” (sic) da produtora Brasil Paralelo, contribuir com um pretenso “avanço do processo neofascista no Brasil”. Autorado por Mayara Aparecida Machado Balestro dos Santos, adepta confessa de uma metodologia marxista-gramsciana, e orientada por Rodrigo Ribeiro Paziani, o trabalho não mereceria de mim maior atenção – não passando de mais um exemplo da degeneração acadêmica que analiso em A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil – caso não fosse parte de uma vasta rede de difamação mal disfarçada de pesquisa científica, com o objetivo de fornecer subsídios intelectuais (ou pseudointelectuais) a campanhas midiáticas de assassinato de reputação e eventuais perseguições na esfera jurídica, hoje infestada de revolucionários de esquerda, dispostos a impor sua ideia de “mundo melhor” mesmo que à revelia das leis.
Com efeito, embora sua autora dê entrevistas defendendo, com pose de sumidade intelectual, a sua “pesquisa científica”, a dissertação em tela talvez devesse ser chamada propriamente de dossiê, cujo alvo principal (mas não exclusivo) é a Brasil Paralelo, descrita em termos gramscianos como um “aparelho privado de hegemonia” (sobre o conceito, ver os capítulos 2 e 3 da parte I de A Corrupção da Inteligência), e cuja própria existência é considerada um escândalo intolerável. Algo, aliás, perfeitamente compreensível do ponto de vista dos promotores da hegemonia gramsciana, que, mediante uma “longa marcha sobre as instituições”, tem como meta final um totalitarismo do pensamento único marxista. “O materialismo histórico, por isso, terá ou poderá ter esta função não só totalitária como concepção do mundo, mas totalitária na medida em que atingirá toda a sociedade a partir de suas raízes mais profundas” – confessa o próprio Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere.
Sintomaticamente, a seção de agradecimentos do dossiê inicia-se com este grito de guerra: “Primeiramente, #FORABOLSONARO!!!” (sic). E se encerra com um agradecimento especial “ao meu Partido do PSOL (sic) em Marechal”. Referindo-se a camaradas do partido, a autora afirma que o dossiê é “fruto de todas as lutas que travamos juntos, símbolo de resistência e sede de mudança”.
E nem seria preciso dizer, pois é fácil notar, desde os primeiros parágrafos, que o trabalho é produto de agitação política coletiva, não de uma ponderada meditação individual. Talvez isso ajude a explicar, antes de tudo, a pletora de erros primários de português cometidos a cada frase, fato que suscita questões como estas: a dissertação não foi revisada? A urgência da guerra política se sobrepôs ao devido cultivo da língua? O orientador estava de férias na época da finalização? A autora não foi alfabetizada a contento? Não contava com nenhum amigo ou parente para lhe dar um bom conselho, alguma tia que lhe dissesse: “Querida, antes de querer refletir ‘sobre a relação entre sociedade civil e Estado no capitalismo’, ou sobre o pretenso ‘avanço do processo neofascista no Brasil recente’, não seria mais prudente se matricular num curso básico de português?”
Embora sua autora dê entrevistas defendendo com pose de sumidade intelectual a sua “pesquisa científica”, a dissertação defendida na Unioeste talvez devesse ser chamada propriamente de dossiê
Sim, os erros são muitos e grosseiros. A primeira frase do resumo já é uma pérola de solecismos afogados em academiquês castiço: “A proposta desse trabalho buscou analisar o fortalecimento e a estruturação de sujeitos coletivos representativos da chamada ‘nova direita’ no Brasil contemporâneo, tendo por enfoque singular um dos seus mais recentes espaços de poder e hegemonia: trata-se da empresa, (sic) ‘Brasil Paralelo’... Os referenciais teóricos e metodológicos estão ancorados numa abordagem marxista-gramsciana (e seus comentadores) que articula questões envolvendo Estado, ‘sociedade civil’, poder e hegemonia às novas configurações político-ideológicas e materiais da sociedade capitalista, com especial atenção nas reflexões de ‘Brasil Paralelo’, enquanto um aparelho privado de hegemonia à serviço (sic) de frações burguesas conservadoras, reacionárias e de marcas fascistas no Brasil recente”.
Primeiro, os solecismos. Ignoremos por ora a recorrente hiperinflação da crase (“à serviço de frações burguesas” é de doer). Deixemos de lado também as frases descoordenadas, nas quais o sujeito muda de repente, e as sem pé nem cabeça, em que o sujeito fica sem objeto: “Conheci o meu objeto de pesquisa por indicação de um amigo, historiador e professor, em conversa com o mesmo ele disse (sic) sobre um canal que estava ganhando espaço na plataforma do YouTube em 2018”. Ou: “A primeira [hipótese], de caráter histórico, apontou que o tradicionalismo historiográfico pautado em documentos escritos tendo o papel como suporte (sic)”.
Concentremo-nos apenas nas vírgulas, o tempo todo mal colocadas, e frequentemente interpostas entre sujeito e objeto. Na primeira frase da introdução, por exemplo, vemos a vírgula intrujona novamente, que já havia aparecido no resumo (“trata-se da empresa, (sic) ‘Brasil Paralelo’”): “A presente pesquisa intitulada ‘Agenda Conservadora, Ultraliberalismo e Guerra Cultural: ‘Brasil Paralelo’ e a Hegemonia das Direitas no Brasil Contemporâneo (2016-2020)’, buscou (sic) refletir e analisar...” (p. 21). Duas páginas adiante, ela reaparece, como se a autora se lhe devotasse um carinho todo especial: “A construção da dominação e direção e a garantia de hegemonia, exige (sic) uma atualização constante das estratégias de produção de consenso...” (p. 23). Transcorrido mais um par de páginas, olha a bichinha aí de novo, toda serelepe, abanando o rabinho para a dona: “O conceito de Estado integral, permite (sic) verificar a estreita correlação...” (p. 25). E assim segue por toda a dissertação... digo, dossiê.
Sobre o academiquês, o leitor bem treinado é levado ao desespero diante de frases construídas naquele estilo evasivo e pedante que o poeta Bruno Tolentino costumava chamar de “penteadeira de velha”. Estilo que corresponde também ao modo viciado de escrever que, em referência à sua língua materna, George Orwell descreveu em A Política e a Língua Inglesa (1946), analisando trechos escritos por autores pretensamente bem versados na arte:
“Cada uma dessas passagens tem faltas próprias, mas, à parte a escusada feiura, há duas qualidades comuns a todas. A primeira é o bafio das imagens; a outra é a falta de precisão. O autor ou quer dizer algo e não consegue exprimi-lo, ou diz inadvertidamente outra coisa, ou é quase indiferente à questão de saber se as suas palavras querem ou não dizer alguma coisa. Essa mistura de vagueza e pura incompetência é a característica mais marcante da prosa inglesa moderna, e em especial de qualquer tipo de escrito político. Mal se levantam certos tópicos, o concreto dissolve-se no abstrato e ninguém parece capaz de pensar em expressões que não sejam estereotípicas; a prosa consiste cada vez menos em palavras escolhidas em função do seu significado, e cada vez mais em expressões pregadas umas às outras como secções de um galinheiro pré-fabricado”.
O autor de 1984 parece ter lido o texto de Mayara Balestro. Por que, por exemplo, a autora não optou por uma construção simples do tipo “Este trabalho analisa o fortalecimento etc.” ou “Nossa proposta é analisar o fortalecimento etc.”? Por que teve de vir com “A proposta desse trabalho buscou analisar o fortalecimento e a estruturação de sujeitos coletivos representativos da chamada ‘nova direita’ no Brasil contemporâneo?”. Foi a proposta que buscou analisar? Porca miséria! E que diabos quer dizer “no Brasil, pode-se dizer que a peculiaridade histórica tem sido atravessada por um ‘refluxo’ reacionário-conservador ocorrido a contar de 2010...”? Atravessar uma peculiaridade histórica não seria algo equivalente a mastigar uma equação do segundo grau? Por óbvio, cada um desenvolve o estilo ou a falta de estilo que bem lhe aprouver, mas não deixa de ser curiosa a escolha dos verbos por parte da autora, que, com sua prosa desconjuntada, nem sequer chega a erguer o galinheiro pré-fabricado mencionado por Orwell – que, afinal, tem utilidade –, mas apenas uma pilha de madeira rota e mofada.
Quem não conhece minimamente a literatura em língua estrangeira sobre fascismo ou neofascismo não pode pretender apresentar como científica uma dissertação sobre o tema
Mas, se o problema da precariedade linguística não é de somenos para uma pretensa historiadora e professora – quem escreve mal pensa mal, diz-se –, mais grave é a acusação caluniosa de fascista que me foi dirigida, e que, além de enfrentada na Justiça – onde os acusadores, mestranda e orientador, terão a chance de se explicar –, merece aqui ser objeto de algumas considerações iniciais.
Caso o leitor tenha curiosidade de conferir as referências bibliográficas do dossiê, notará de imediato a ausência de títulos em língua estrangeira dentre as obras citadas, talvez porque, especulo, a autora tenha dificuldade com outros idiomas, até mesmo o inglês. Não digo isso a título de troça das eventuais carências intelectuais de Mayara Balestro. Estas, com o tempo, podem ser corrigidas pelo estudioso honesto e dedicado. Digo-o porque grande parte da bibliografia de referência sobre o fascismo, aquela sem a qual não se domina o status quaestionis, e não se pode começar uma pesquisa séria sobre o assunto, só está disponível em língua estrangeira, sobretudo inglês, francês e italiano. Quem não conhece minimamente essa literatura não pode pretender apresentar como pesquisa científica uma dissertação sobre fascismo ou neofascismo.
Dessa lacuna bibliográfica elementar decorre um problema evidente no trabalho de Balestro: as suas precárias tentativas de definir o fascismo, bem como a sua total ignorância, quase cômica de tão genuína, sobre as dificuldades que a literatura especializada registra em relação a essa ingrata tarefa. Dos principais estudiosos contemporâneos do fascismo, a autora não cita senão Robert Paxton, cujo importante livro A Anatomia do Fascismo foi traduzido no Brasil pela Paz e Terra. Mas cita-o de esguelha, junto com Leandro Konder, intelectual comunista que, apesar de haver escrito uma pequena introdução sobre o tema, nunca chegou a ser um erudito em fascismo.
Apegando-se a essas fontes limitadas, e decerto mal digeridas, a autora parece ignorar que a definição generalista dada por Paxton insere-se num longo e acirrado debate, do qual tomaram parte nomes como Stanley Payne, Roger Griffin, A. James Gregor, Richard A. H. Robinson, Zeev Sternhell, Renzo De Felice, para não falar em Giovanni Gentile, Ernst Nolte, Hannah Arendt, Eric Voegelin, Richard Overy e Robert Gellately, entre outros, todos eles ausentes da bibliografia de Balestro.
Daí que Balestro nem desconfie que, como observa Payne logo no primeiro parágrafo de Uma História do Fascismo (1914-1945), “ao fim do século 20, é provável que fascismo continue sendo o mais vago dos principais conceitos políticos”. Uma ressalva partilhada por Richard A. H. Robinson: “Por maiores que tenham sido a quantidade de pesquisas e os esforços intelectuais dedicados ao seu estudo, o fato é que o fascismo permanece sendo o grande enigma para os estudiosos do século 20”. Comentário que, por sua vez, levou Griffin a brincar: “Tamanho é o emaranhado de opiniões divergentes acerca do termo que virou quase uma regra de etiqueta abrir as contribuições ao debate sobre o fascismo com uma tal observação”.
Mayara Balestro nunca ouviu falar nesse “emaranhado de opiniões divergentes”, e jamais procurou saber do assunto mais do que o necessário para utilizar o termo não como conceito descritivo, mas como reles ofensa política. E, muito embora também não o saiba, nisso ela reproduz acriticamente as primeiras interpretações sobre o fascismo surgidas no seio do marxismo italiano no pós-Primeira Guerra, fonte também, aliás, do movimento ele mesmo. Segundo essas interpretações simplórias e inextricavelmente mescladas com retórica política – que, mais tarde, viriam a ser contestadas dentro do próprio marxismo europeu –, o fascismo seria um movimento “de direita”, um instrumento da “burguesia reacionária” ou do “grande capital”. Simples assim. Errado assim.
Pois eis que, um século depois, a autora do dossiê continua reproduzindo essa lengalenga desacreditada academicamente, posto que ainda influente na linguagem corrompida da luta política – que, afinal, é a que lhe interessa. Com isso, mesmo totalmente alheia à complexa questão de saber o que o fascismo é, Balestro não se vexou em caracterizar-me como fascista, apesar de minha posição pública, manifesta em livro, artigos e comentários nas redes sociais, de rejeição a todas as formas de totalitarismo, uma postura que, enquanto militante socialista assumida e intelectual coletiva gramsciana, ela não pode adotar sem perder prestígio entre os pares (alguns dos quais, aliás, defensores descarados da censura).
Mas sobre tudo aquilo que Balestro ignora acerca do fascismo (e ignora que ignora) falaremos no artigo da próxima semana, no qual também desataremos mais nós dessa rede totalitária de difamação. Até lá.
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