“Por isso alegrai-vos, ó céus, e todos que aí habitais. Mas, ó terra e mar, cuidado! Porque o Demônio desceu para vós, cheio de grande ira, sabendo que pouco tempo lhe resta.” (Apocalipse 12,12)
Em 1832, de passagem pelo Brasil, um visitante estrangeiro registrou em seu diário pessoal:
“Passou-se o dia procurando obter passaporte para minha expedição pelo interior. Não é nada agradável a gente submeter-se à insolência de funcionários públicos; mas se submeter aos brasileiros, que são tão desprezíveis no espírito como miseráveis no corpo, chega a ser intolerável. A perspectiva, porém, de ver uma floresta que é habitada por belas aves, macacos, preguiças e lagos onde moram jacarés, fará qualquer naturalista lamber o pó que acaba de ser pisado até mesmo pelo pé de um brasileiro.”
O visitante era ninguém menos que Charles Darwin, que, assim como outros estrangeiros – incluindo outro célebre naturalista, Alexander von Humboldt –, exasperara-se com a hostil burocracia do Estado brasileiro. Embora, do ponto de vista estritamente burocrático, nada tenha mudado muito de lá para cá, resta que o Estado brasileiro se tornou mais e mais orgulhoso, crendo-se como tutor moral do povo e digno, portanto, de toda a reverência. O Estado brasileiro, cada vez também mais totalitário, já não admite virtudes privadas.
Agravado pelo fato de ter sido tomado por socialistas, o Estado brasileiro hoje exija gratidão e subserviência. O Estado quer ser amado e venerado. Tem horror à crítica, à indiferença e ao meme
Em meados do século 19, já Alexis de Tocqueville alertara para o tipo de despotismo que as nações formalmente democráticas deveriam temer. No capítulo 6, da parte IV do segundo volume de A Democracia na América, é como se o visconde falasse do Brasil:
“Sobre essa raça de homens impera um poder imenso e tutelar que se atribui a obrigação exclusiva de gratificá-los e presidir sobre seu destino. Esse poder é absoluto, minucioso, regular, providente e suave. Seria como uma autoridade de pai se, como essa autoridade, fosse seu propósito preparar os homens para a idade adulta; mas ele procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: contenta-se em que o povo se divirta, contanto que não pense em outra coisa senão divertimento. Para sua felicidade tal governo trabalha com prazer, mas deseja ser o agente único e árbitro exclusivo dessa felicidade... Assim cada dia torna menos útil e menos frequente o exercício da livre capacidade do homem; circunscreve a vontade num âmbito cada vez mais estreito e gradualmente priva o homem de todosos usos que, de si mesmo, pode fazer.”
Eis por que, agravado pelo fato de ter sido tomado por socialistas, o Estado brasileiro hoje exija gratidão e subserviência. O Estado quer ser amado e venerado. Tem horror à crítica, à indiferença e ao meme. Nisso, o nosso Leviatã mimetiza perfeitamente uma característica da entidade fundadora do poder mundano, tal como celebremente descrita por São Thomas More: “O diabo, o espírito orgulhoso, não tolera ser motivo de chacota”.
Em Cartas de um diabo ao seu aprendiz, também C. S. Lewis deu destaque ao orgulho satânico. Invejando a relação de Deus com os seres humanos – cuja criação exasperou Lúcifer a ponto de precipitá-lo à queda –, o diabo mais velho explica ao seu aprendiz:
“Para nós, os humanos não são nada além de alimento; nosso objetivo é absorver a disposição deles para fortalecer a nossa, aumentar a nossa reserva de egoísmo à custa deles. Mas a obediência que o Inimigo [ou seja, Deus] exige dos homens é algo bem diferente. Temos de admitir que toda aquela conversa sobre Seu amor pelos homens e sobre o fato de que o serviço a Ele é a perfeita liberdade não é, como acreditaríamos de bom grado, mera propaganda, mas uma terrível verdade. Ele realmente quer preencher o universo com inúmeras pequenas réplicas repugnantes de Si mesmo – criaturas cuja vida, em escala menor, será qualitativamente como a d’Ele, não porque Ele as absorveu, e sim porque a vontade deles está em espontânea harmonia com a d’Ele. Nós queremos apenas um gado que finalmente poderá ser transformado em alimento; Ele quer servos que finalmente poderão tornar-se filhos. Nós queremos sugá-los; Ele quer fortalecê-los. Somos vazios, e por isso queremos ser preenchidos; Ele está repleto e transborda. Nosso objetivo nessa guerra é um mundo no qual o Nosso Pai nas Profundezas possa absorver todos os outros seres nele mesmo; o Inimigo quer um mundo repleto de seres unidos a Ele e ainda assim distintos.”
Acrescenta ainda o diabo de Lewis:
“Ele deixa Sua criatura andar com as próprias pernas – e pôr em prática, apenas por sua própria vontade, todas aquelas tarefas que há muito não oferecem nenhum atrativo. É durante esses períodos de tribulação, bem mais do que nos períodos de pico, que a criatura começa a se transformar naquilo que Ele quer que ela seja. É por isso que as preces oferecidas num estado de aridez são as que mais Lhe agradam. Podemos arrastar continuamente nossos pacientes, tentando-os constantemente, porque os concebemos apenas como alimento, e, quanto mais pudermos atrapalhar sua força de vontade, melhor. Ele não pode ‘tentá-los’ para a virtude, assim como nós os tentamos para a perversão (...) Lembre-se sempre de que Ele realmente gosta desses vermezinhos, e que dá um valor absurdo para a individualidade de cada um deles.”
O Estado brasileiro não se contenta em ser mau. Nutre ódio pelos bons. O Estado ressente-se da caridade particular, e busca uma vingança contra os que praticam o bem
Diante do que se passa no Rio Grande do Sul, da mobilização caridosa dos particulares e da reação ressentida do Estado brasileiro em face dessa iniciativa própria de cidadãos independentes, sinto-me cada vez inclinado a concordar com Eric Voegelin, e a divisar uma raiz espiritual profunda nos atuais embates políticos no Brasil. Donde a importância do simbolismo bíblico. Como, em As Religiões Políticas, escreveu Voegelin acerca do nacional-socialismo: “Há mal no mundo e, além disso, esse mal não é apenas um modo deficiente de ser, um elemento negativo, mas também uma substância e força reais que são efetivas no mundo. A resistência contra uma substância satânica que não é apenas moralmente, mas também religiosamente má, só pode ser derivada de uma força religiosamente boa igualmente forte. Não se pode lutar contra uma força satânica apenas com moralidade e humanidade”.
A tragédia das enchentes no sul do país deixou algo muito claro: o Estado brasileiro não é apenas ineficaz. Não peca apenas por omissão. Demonstra um ódio ativo à eficácia e à boa ação dos particulares. Em termos morais, o Estado brasileiro não se contenta em ser mau. Nutre ódio pelos bons. O Estado ressente-se da caridade particular, e busca uma vingança contra os que praticam o bem. Parece mesmo haver nisso algo de um orgulho satânico – algo da inveja de Lúcifer por Nosso Senhor Jesus Cristo. É por isso que, a todos os cidadãos empenhados em socorrer as vítimas, bem como aos que denunciam os entraves estatais à caridade direta entre as pessoas, resta-nos orar por proteção divina. Que Deus guie e proteja os justos!