Vandalismo e incêndios marcaram protestos do Black Lives Matter em Minneapolis, no fim de maio de 2020.| Foto: Tannen Maury/EFE/EPA
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No último sábado, 15 de janeiro, meu colega antropólogo Antônio Risério publicou na Folha de S. Paulo um artigo corajoso abordando um tema tabu no debate público contemporâneo: o racismo de negros contra brancos, um fenômeno que, embora ignorado ou deliberadamente ocultado pela grande imprensa em geral, vem se intensificando na medida em que a extrema-esquerda identitária (da qual essa mesma imprensa atua como porta-voz) galga posições de poder e influência na sociedade.

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Partindo de vários casos ocorridos nos EUA – e, sintomaticamente, naturalizados ou suprimidos do noticiário –, Risério afirma que os episódios se sucedem, “mas a ordem unida ideológica manda fingir que nada aconteceu”. E conclui: “Engana-se, mesmo com relação ao Brasil, quem não quer ver racismo, separatismo e mesmo projeto supremacista em movimentos negros. O retorno à loucura supremacista aparece, agora, com discurso de esquerda... O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente, penso que é norma. Decorre de premissas fundamentais da própria perspectiva identitária, quando passamos da política da busca da igualdade para a política da afirmação da diferença”.

Para surpresa de ninguém, o artigo provocou as reações típicas da extrema-esquerda e dos inocentes úteis que, sem o saber, percebem e sentem a realidade de acordo com a propaganda ideológica do identitarismo woke, veiculada mediante a repetição incessante de slogans-chiclete na grande imprensa, na indústria do entretenimento, na publicidade, nas escolas, na vida universitária e até mesmo nas igrejas. Daí que, em lugar de críticas racionais, que tentassem lidar minimamente com os argumentos e os dados apresentados no texto, o que se viu foi aquela pose histriônica de indignação moral (e de quase repulsa física) que, no espírito do militante embrutecido pela linguagem ideológica, prepara e justifica os pedidos de censura, os desejos homicidas, a ânsia pelo expurgo do objeto de escândalo. Não espantaria que, entre a turba totalitária e comunistoide, muitos houvessem dispostos a aplaudir o eventual fuzilamento do “criminoso” que ousou borrar a autoimagem edulcorada dos guerreiros da justiça social.

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O racismo de negros contra brancos, embora ignorado ou deliberadamente ocultado pela grande imprensa em geral, vem se intensificando na medida em que a extrema-esquerda identitária galga posições de poder e influência na sociedade

Nos bas-fonds da blogosfera de extrema-esquerda – em portais como esse, por exemplo –, o texto foi sumariamente catalogado como “racista”. Por óbvio, pela lógica rudimentar da militância racialista, não há escapatória: quem quer que não compactue com a agenda identitária só pode ser racista. Mas racismo, por definição, significa a atribuição de determinados comportamentos, disposições e qualidades de caráter fixos a uma dada “raça” – com muitas aspas no termo, que não significa outra coisa que um conjunto de traços fenotípicos (cor de pele, coloração dos olhos, textura do cabelo, espessura do nariz etc.) artificialmente agrupados. Assim, ao longo da história, racistas já decretaram peremptoriamente coisas como: “negros” são indolentes e intelectualmente limitados; “índios” são preguiçosos e inconstantes; “judeus” são avarentos e gananciosos, e assim por diante.

Ora, é justamente o contrário o que Risério diz no artigo. Segundo ele, ser racista não é um atributo inerentemente associado a nenhuma “raça” em particular. O racismo – variante pseudocientífica do etnocentrismo, que, desde Claude Lévi-Strauss, sabemos ser uma tendência universal no homem – é um sentimento potencialmente presente em todo grupo étnico e em qualquer indivíduo. Agora, uma coisa é a constatação desse fato social, por assim dizer; outra, muito diferente, é o nosso posicionamento moral em relação a ele. Que se constate a universalidade antropológica do racismo não significa que não se deva condená-lo. Ao contrário, ao compreender adequadamente o fenômeno, temos mais ferramentas para manter vigiante o espírito.

É o que faz Risério, ao afirmar categoricamente que “o racismo é inaceitável em qualquer circunstância”. Ou seja, o antropólogo baiano faz uma leitura não racista – e antirracista – do racismo. Já seus acusadores fazem justamente o oposto: uma interpretação racista do racismo, ao sugerir que os “brancos” são inerentemente (ou naturalmente) racistas, tal como os “negros” seriam indolentes, os “indígenas”, preguiçosos e os “judeus”, avarentos. A reação da militância identitária ao artigo fornece uma prova suplementar do acerto da tese de Risério.

Note-se que, curiosamente, os detratores acusam o autor de advogar em favor da tese de um pretenso “racismo reverso”, que eles negam existir. Eis aí um grande espantalho, já que Risério não usa a expressão em momento algum. Porque, de fato, não existe racismo reverso. O que existe é racismo – seja de “brancos” contra “negros”, ou de “negros” contra “brancos”, de “negros” contra “asiáticos”, de “asiáticos” contra “negros”, de “brancos” contra “brancos” (como no caso da Alemanha nazista), de “negros” contra “negros” (como no caso de Ruanda), e assim por diante.

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Eu, que também venho abordando o tema há algum tempo, digo sem medo de errar: Risério tem razão. O que temos visto surgir nos EUA – e ao contrário do que alegam os extremistas identitários, que acusam o autor da prática de cherry-picking – é quase uma epidemia de ataques racistas cometidos por “negros” contra membros de outras etnias (ver, por exemplo, esse meu artigo sobre o tema). O que acontece é que, contrariamente ao que aconteceria se os papéis de vítima e agressor se invertessem, o fenômeno não causa escândalo nem indignação. Frequentemente, nem sequer é noticiado. Tudo se passa como se tivéssemos, nesse caso, uma espécie de racismo permitido.

Essa parece também ser a percepção da população americana sobre o fenômeno do racismo no país. Pelo menos se estiver correta uma pesquisa realizada em 2013 pelo instituto Rasmussen Reports, cuja conclusão foi a de que a maioria dos americanos acha que, hoje, “negros” são mais racistas do que “brancos”, “hispânicos” e demais etnias. Significativamente, a opinião geral é mantida entre os “negros”, dos quais 31% acham que a maioria dos negros é racista, e apenas 24% acreditam que a maioria dos brancos é racista.

O que temos visto surgir nos EUA é quase uma epidemia de ataques racistas cometidos por “negros” contra membros de outras etnias, um fenômeno que não causa escândalo nem indignação

Mas, embora Risério tenha tomado a América por objeto principal, é preciso lembrar que o mesmo fenômeno já se encontra em estado avançado no Brasil, pelo menos ao nível da retórica e da linguagem, cuja virulência anuncia, há tempos, a violência racial futura. Como quando, por exemplo, uma ministra de Estado declara que “A reação de um negro de não querer conviver com um branco, eu acho uma reação natural. Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”. Ou uma jornalista afirma que, em seu meio profissional, “os brancos se conhecem e se escolhem”, sugerindo, implicitamente, que os “negros” devam fazer o mesmo.

Foram colegas meus e do Risério, aliás, que, com coragem e presciência, alertavam já em 2007 sobre os perigos do racialismo identitário para a sociedade brasileira, sobretudo quando consagrado em lei. Refiro-me aos antropólogos – alguns dos quais meus professores de faculdade – Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos, autores de Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo, um livro fundamental para quem quer entender como chegamos no ponto em que estamos, em que, sob pretexto do combate ao racismo, as mais cruas formas de racismo são orgulhosamente manifestas.

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Por fim, concluo com um texto importante do brilhante economista (negro) Walter Williams, falecido em 2020, que chega a caracterizar os militantes do movimento negro contemporâneo – formado tanto por indivíduos “negros” quanto por indivíduos “brancos” – como “os novos racistas da América”. Williams recorda a sua infância na Filadélfia, num tempo em que crianças com a sua cor de pele estavam sujeitas a toda sorte de insultos e agressões racistas. “Lembro-me de, nos anos 1940, eu e meu primo sendo perseguidos e expulsos de Fishtown e Grays Ferry, dois bairros predominantemente irlandeses, e só parando de correr ao chegar nos bairros negros do Norte ou do Sul da cidade” – escreve, apenas em seguida acrescentar: “Hoje tudo mudou. A maioria dos ataques raciais é cometida por negros”. E concluir, pesaroso: “E o pior de tudo é ver negros, muitos dos quais viveram os tempos dos linchamentos, das leis Jim Crow e do racismo escancarado, se calando diante do problema… O silêncio dos negros em face do racismo dos negros é uma das mais grave traições à luta pelos direitos civis, encampada tanto por americanos negros quanto por brancos”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]