A ministra Damares Alves.| Foto: Gazeta do Povo

Em março de 2009, a bordo do Shepherd One, o Papa Bento XVI foi entrevistado por um grupo de jornalistas. No momento em que a aeronave baixava para 30 mil pés, já sobrevoando o local de destino – o continente africano –, o repórter Philippe Visseyrias, do canal France 2, fez ao Santo Padre a seguinte pergunta:

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“Santidade, entre os muitos males que atormentam a África, existe também, e sobretudo, o da difusão da Aids. A posição da Igreja Católica sobre o modo de lutar contra ela é com frequência considerada irrealista e ineficaz. Vossa Santidade enfrentará este tema durante a viagem?”

Falando em francês, por solicitação do repórter, Bento XVI deu uma longa e paciente resposta, que traduzo livremente a partir do site do Vaticano:

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“Eu diria o contrário. Creio que o ator mais eficaz e proativo na linha de frente do combate à Aids é a Igreja Católica, com os seus vários movimentos e organizações. Penso, por exemplo, na Comunidade de Sant’Egídio, que faz tanta coisa, pública, mas também discretamente, no combate à Aids. Penso nos camilianos e em tantos outros, como as irmãs que cuidam dos doentes. Eu diria que o problema da Aids não pode ser superado apenas com investimento, por mais necessário que o seja. Se não houver uma dimensão humana, e os africanos não ajudarem [adotando um comportamento responsável], o problema não será solucionado via distribuição de preservativos: ao contrário, isso irá agravá-lo. A solução deve conter dois elementos: primeiro, o resgate da dimensão humana da sexualidade, ou seja, uma renovação espiritual e humana que traga consigo um novo modo de se relacionar com o outro; segundo, a verdadeira amizade oferecida aos que estão sofrendo, uma disposição para fazer sacrifícios e praticar a abnegação, para estar junto com os sofredores. São estes, pois, os fatores que ajudam e levam a um progresso real: o nosso esforço duplo para renovar intimamente a humanidade, fortalecendo-nos espiritual e humanamente para uma conduta apropriada com os nossos corpos e os corpos alheios; e essa capacidade de sofrer junto aos que sofrem, de permanecer firme e presente em situações de provação. Essa me parece ser a resposta adequada, e é essa a resposta da Igreja, que, portanto, dá uma contribuição vasta e importante. Agradecemos a todos os que o fazem.”

Os jornalistas não percebem o ridículo dessa pose de representantes da razão científica contra a irracionalidade religiosa

Munidos dessa resposta tão completa e cheia de nuances, jornalistas do mundo inteiro, submersos numa cultura profissional marcada por preconceito anticlerical, preferiram destacar e descontextualizar o trecho sobre o uso de preservativos, a fim de provocar o escândalo costumeiro, estampado em manchetes sensacionalistas.

Um editorial do The New York Times, por exemplo, afirmou que o papa “não merece crédito quando distorce descobertas científicas sobre a importância dos preservativos para frear o avanço do vírus HIV”. O Washington Post declarou que “o papa Bento XVI está errado, pois assim dizem as evidências”. E até mesmo um jornal especializado em medicina como o Lancet, cujo tom é habitualmente sóbrio, subiu nas tamancas para qualificar a opinião do papa de “equivocada e ultrajante”.

Tendo por hábito profissional escutar o galo cantar sem saber onde, é claro que a imprensa brasileira não poderia ficar de fora de mais essa fanfarra contra a Igreja Católica. E, nesse sentido, uma matéria do Estadão exemplifica o teor geral da cobertura. Com o título “Camisinha agrava aids, diz papa rumo à África”, que distorcia deliberadamente a fala de Bento XVI, a matéria informava que “as declarações do pontífice chocam-se com estudos científicos que comprovam a ineficácia da estratégia de promoção da abstinência como forma de prevenir a Aids”. E destacava a opinião de um tal Pedro Chequer, representante no Brasil da Unaids, órgão da ONU para o combate à doença (a mesma ONU, recorde-se, responsável por uma quantidade alarmante de casos de abuso sexual de menores, não apenas na África, como em outras regiões subdesenvolvidas).

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“É lamentável que após toda a luta da sociedade para o controle da Aids tenhamos uma pregação genocida”, dizia Chequer. “Há segmentos que só reconhecem os erros após cinco séculos, só que lidamos com um bem maior que é a vida e não podemos esperar cinco séculos”. Sim, do alto de sua posição de representante da instituição que conta com mais de 3 mil pedófilos em seus quadros, o sujeito não corava ao estigmatizar como “genocida” a fala do papa.

Lembrei de mais esse caso de corrupção jornalística ao topar com reportagens sobre um projeto do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Sob o comando da ministra Damares Alves, e inspirada na campanha “Eu Escolhi Esperar”, a pasta estuda implementar um programa de incentivo à iniciação sexual tardia como forma de prevenir a gravidez e a propagação de DSTs na adolescência. Como era de se esperar, a cobertura da imprensa reveste-se daquele mesmo ar de escândalo e indignação com que foi tratada a declaração do papa em 2009, sempre procurando contrapor, a uma pretensa obscuridade de teor religioso do programa, a luminosidade radiante da ciência, que, supostamente, o contradiz.

Exemplo típico foi um artigo opinativo de Flávia Oliveira, orgulhosa representante do jornalismo engajado e politicamente correto. Intitulado “Abstinência não é política pública”, o texto inicia com a vigorosa denúncia: o país está sob o “cerco dos guardiões da moral, dos costumes e da fé”. Graças a iniciativas como a da ministra Damares, sugere a jornalista global, esse cerco estaria se aproximando das políticas públicas referentes aos “direitos sexuais e reprodutivos” das jovens brasileiras. “São retrocessos de motivação religiosa – portanto, indesejáveis na formulação de políticas sociais”, escreve Flávia.

Ao contrário de contradizer, o que as evidências científicas fazem é corroborar a posição do papa Bento XVI e o projeto da ministra Damares Alves

Como contraponto “científico” àqueles “retrocessos de motivação religiosa”, a jornalista faz referência a uma tal Rede Feminista de Ginecologia e Obstetrícia, que estaria preparando uma resposta ao governo em forma de artigo, bem como se articulando para fazer lobby contra o projeto junto ao Congresso, ao Judiciário e à sociedade civil. “A intenção é fazer a informação circular”, dizem representantes do grupo. “Há muitos estudos provando que abstinência não produz resultado em evitar gravidez e DST. O que funciona é educação e acesso a contraceptivos”.

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Sem corar por tratar como representante da ciência médica um grupo autodeclarado feminista, Flávia Oliveira endossa acriticamente a tese veiculada no documento em preparação, sem checar a veracidade de nenhuma das afirmações e recomendações aí contidas. E conclui o artigo nestes termos: “O futuro do país estará comprometido, se a sociedade permitir que convicções morais e religiosas se sobreponham à ciência e às melhores práticas em políticas sociais”.

De maneira quase inocente, Flávia e seus pares não percebem o ridículo dessa pose de representantes da razão científica contra a irracionalidade religiosa. Ridículo porque, em primeiro lugar, tudo o que sabem de ciência é de orelhada, e o que chamam por esse nome não passa de cientificismo – uma ideologia como qualquer outra. Em segundo lugar, por nem sequer suspeitarem que a sua própria posição parte de premissas ideológicas cujos fundamentos eles jamais questionam, e que remontam aos modismos comportamentais da contracultura e do Sexlib.

Assim, a crença na distribuição de preservativos como panaceia é indissociável de um código moral hedonista, que rejeita como careta, moralista ou opressivo todo apelo a mudanças de comportamento e ao autodomínio sobre as próprias vontades. Para os que se guiam por esse código, a obtenção egocêntrica de prazer, em especial a satisfação irrefreada dos desejos sexuais, é uma cláusula pétrea.

Não há nisso nada de científico ou racional, evidentemente. Trata-se, ao contrário, da adesão inconsciente a um sistema de valores que, via uma infinidade de intermediários (a começar por outros jornalistas, críticos, publicitários etc.), imoralistas filosóficos convictos como Marquês de Sade, Nietzsche, Reich, Marcuse, Foucault, Kinsey, entre outros, conseguiram sedimentar na indústria cultural contemporânea.

Foi contra esse pano de fundo ideológico – que faz da camisinha meio e pretexto para um comportamento sexual inconsequente, glorificando toda forma de sexo, desde que “seguro” – que o papa se posicionou em 2009. E é contra o mesmo pano de fundo que, aparentemente, a iniciativa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos procura reagir, ofertando aos jovens e adolescentes um modelo de sexualidade alternativo à cultura hedonista do “liberou geral”, e convidando-os a, em vez de apenas confiar num instrumento miraculoso qualquer (camisinha, pílula etc.), assumir também a sua parcela de responsabilidade pessoal quanto às consequências do ato sexual.

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Mas o teatrinho da ciência vs. religião performado por nossos jornalistas torna-se ainda mais excêntrico quando levamos em conta que, ao contrário de contradizer, o que as evidências científicas fazem é corroborar a posição do papa e o projeto da ministra Damares Alves. Afirmações categóricas como “estudos científicos comprovam a ineficácia da estratégia de promoção da abstinência como forma de prevenir a Aids”, ou “o futuro do país estará comprometido se a sociedade permitir que convicções morais e religiosas se sobreponham à ciência e às melhores práticas em políticas sociais”, ou ainda “há muitos estudos provando que abstinência não produz resultado em evitar gravidez e DST. O que funciona é educação e acesso a contraceptivos” são, além de presunçosas, objetivamente falsas. Na melhor das hipóteses, coisa de ignorante. Na pior, de mentiroso profissional. Mas disso falaremos no artigo da semana que vem.