Assim como outras nações, a Austrália começa gradualmente a anunciar o relaxamento das medidas restritivas adotadas no combate ao coronavírus. Uma vez que os índices de contágio vêm decaindo no país, o Primeiro-Ministro Scott Morrison anunciou a intenção de retomar as atividades econômicas e sociais a partir deste mês.
Elogiando a decisão do governo australiano, a porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), dra. Margaret Harris, afirmou que o relaxamento só surge como perspectiva para a Austrália porque, muito além de simplesmente adotar um lockdown rígido, o país adotou desde o início, por assim dizer, um lockdown dinâmico: com testes em massa, mapeamento das zonas com maior grau de contágio comunitário, isolamento direcionado, medidas sanitárias customizadas por região etc. Mencionando também o que foi feito em Wuhan – o epicentro da pandemia –, a dra. Harris acrescentou: “Portanto, há muito mais coisas envolvidas do que simplesmente fechar tudo”.
Mas a fala mais inusitada da representante da OMS, segundo informa reportagem do jornal australiano The Sidney Morning Herald, foi aquela que desafia frontalmente a visão consensual acerca das orientações dadas pela organização, e que parece contradizer diretrizes anteriores. Nas palavras da dra. Harris: “Nós nunca recomendamos o lockdown. O que dissemos foi para rastrear, investigar, isolar e tratar”.
Mas a fala da dra. Margaret Harris não foi a única a criar problemas para a narrativa hegemônica no debate público brasileiro, segundo a qual as orientações da OMS (que, por aqui, virou sinônimo de “a ciência”) determinam – sim, o verbo usado tem sido esse – a adoção do lockdown. Um outro alto funcionário da organização, o dr. Mike Ryan, afirmou a jornalistas em Genebra que a Suécia (onde não houve lockdown) deveria servir de modelo para o mundo. “Os suecos fizeram testes em massa, e ampliaram a sua capacidade de medicina intensiva de modo significativo” – disse o dr. Ryan.
Diante do exposto acima, surgem algumas questões. Se a OMS não recomendou o lockdown, quem o terá feito? Se a Suécia, que não optou pelo lockdown, é citada como modelo por um representante da OMS, por que essa opção virou tabu, muito particularmente no Brasil?
O fato é que, ao menos no nosso país, a tarefa de “rastrear, investigar, isolar e tratar” – para usar a sequência de palavras da dra. Margaret Harris – parece ter sido relegada a um segundo plano por autoridades governamentais e municipais, bem como por congressistas, juristas e formadores de opinião, que optaram justamente pelo expediente dogmático e preguiçoso (para não falar, em alguns casos, corrupto) de “simplesmente fechar tudo”.
O que restou para governadores e prefeitos com síndrome de Stalin foi apelar para a truculência espetaculosa, a repressão ilegítima e o totalitarismo
Com efeito, na ausência de capacidade administrativa e visão estratégica para implementar medidas de isolamento dinâmicas e proativas, e movidos por mero cálculo político-eleitoral, o que restou para governadores e prefeitos com síndrome de Stalin foi apelar para a truculência espetaculosa, a repressão ilegítima e o totalitarismo – no que, aliás, receberam o apoio moral de um enxame de sicofantas muito bem posicionados nos meios de comunicação.
Há alguns dias, por exemplo, recebi de um amigo, empresário residente em Teresópolis (região serrana do Rio), um relato sintomático. Certa manhã, quando estava em casa com a mulher e os filhos, bateram-lhe à porta dois oficiais do Ministério Público (MP-RJ), encarregados de lhe entregar uma notificação que, seguindo decretos abusivos, tanto municipais quanto estaduais, “recomendava” a não-participação em uma carreata prevista para ocorrer em favor da reabertura do comércio na região, evento que, segundo a notificação, poderia “efetivamente colocar em risco a saúde pública dos munícipes da cidade de Teresópolis”.
Outros empresários e representantes de associações comerciais receberam ameaças equivalentes, uma violação frontal a direitos constitucionais elementares. Sobretudo porque, como fora previamente comunicado às autoridades competentes pelos organizadores da manifestação, todas as medidas de prevenção contra o contágio seriam tomadas: ausência de aglomeração de pessoas (orientadas a se deslocar até o local ao evento exclusivamente dentro de seus veículos), recomendação do uso de máscaras, organização e manutenção de distância segura entre os veículos etc.
A carreata acabou acontecendo, de maneira ordeira, pacífica e sanitariamente responsável, como previamente prometido. Ainda assim, seus organizadores tornaram-se réus em ação civil pública ajuizada pelo MP-RJ. As placas dos veículos presentes ao evento foram anotadas para eventual apreensão e perdimento em favor da União, estados e municípios no combate ao coronavírus – porque, afinal de contas, não basta violar direitos e intimidar cidadãos. É preciso também (eis uma velha tradição totalitária) confiscar-lhes a propriedade em favor do “bem comum”.
Mas o registro anedótico do que ocorreu em Teresópolis é apenas a ponta desse processo vertiginoso que vamos testemunhando, de erosão das liberdades e direitos individuais, sempre, é claro, sob a justificativa do cumprimento das recomendações “científicas” das organizações internacionais. Justo num momento em que, como vimos, a própria OMS vacila quanto à eficácia genérica do lockdown, nossos governadores e prefeitos decidem adotá-lo de forma irrestrita, mantendo, muito oportunamente, as suas populações em cárcere privado, enquanto se aproveitam da situação emergencial para promover orgias nababescas com o dinheiro público.
Como se vê, enquanto o grosso da população nacional sofre com os efeitos da doença, há autoridades para as quais a pandemia parece ter sido recebida como bênção divina. É claro que, nesse contexto, não hesitarão em continuar seguindo as “orientações” da OMS? Quais? Bem, as que lhes forem mais convenientes...
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