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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Aborto

Pose e farsa

Silvio Almeida e Eduardo Girão
Silvio Almeida se recusou a receber réplica de feto de 11 semanas, símbolo da luta contra o aborto, das mãos do senador Eduardo Girão. (Foto: Pedro França/Agência Senado)

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Nesses tempos bicudos, não passa um dia sem que, à la Gregor Samsa, eu desperte de sonhos intranquilos. Se não chego a me ver metamorfoseado num inseto gigantesco, teimo em divisar na penumbra um bizarro festival de pusilanimidades, que desfilam na fauna política nacional com todo o seu assombro. Há, entre os comissários do povo, aqueles dos mais variados estilos, passando pelo truculento até o mais posudo, com afetação de dignidade intelectual. Quero hoje falar deste tipo. Mas me adianto.

Sempre diante de momentos históricos de trevas, recorro ao filósofo Eric Voegelin, cuja bússola moral era muito bem calibrada. Foi um sujeito com um senso de honra e um amor pela verdade tão elevados que, por seu desprezo visceral para com o nacional-socialismo, chegou a brigar com parte da família, incluindo seu pai e sua irmã, Klara Hartl. Recém-chegado aos EUA, escapando por pouco de ser preso pela Gestapo, Voegelin endereçou a Klara estas duras palavras em carta de 16 de agosto de 1939:

“Querida Klara, é muito gentil de sua parte ter querido me escrever, mas poupe-me de seus truques nazistas. Deveria saber que não sou estúpido para cair neles. Entre nós, não há uma diferença de opinião, como você pretende fingir, mas assassinato, roubo, pilhagem. Não aja como se fosse decente demais para mencionar essas coisas. Eis um truque nazista manjado. Evitam-se assuntos desagradáveis, mas roubam-se das pessoas até a sua última peça de roupa, e se as espancam até a morte caso não cedam de bom grado (...) Admito que minha descrição foi virulenta. Essa é a reação mínima ao tratamento revoltante que recebi nas mãos de seu bando de delinquentes-em-marrom. Ou você pretende negar que, em violação ao meu contrato, eu tenha sido demitido sem salário e sem motivo? Ou que se me tenham negado a pensão à qual tinha direito? Ou até mesmo que eu esteja na América? Ou que eu tenha escapado graças a um grande esforço, e que você tenha usado a insígnia do partido quando veio me ver? Você nega que essa desgraça de pai exiba uma foto do bando de delinquentes sobre a sua mesa, e que tenha ficado tolamente satisfeito ao ver o seu filho ser roubado por eles?”

Quando se trata de falar de sua própria realidade pessoal, o sujeito humaniza o feto, tratando-o por “minha filha que vai nascer”. Essa é a atitude normal. Mas por que o ministro abandona essa atitude quando está lidando com os fetos alheios?

Não cheguei a comentar sobre o assunto por aqui e, embora já tenha passado um punhado de dias, continuo a me assombrar por ele. Lembrei dos comentários de Voegelin ao presenciar o episódio em que, afetando estar profundamente ofendido com a pretensa grosseria de um senador, um ministro de Estado nada disse sobre sua posição favorável à legalização do aborto. Evitando-se assuntos “desagradáveis”, o ministro preferiu abafar a consciência embalando-a num senso moral corrompido e estetista. Estava tudo muito bem em defender a ampliação da permissão para a retirada da vida de seres humanos em fase embrionária (porque é isso um feto, e não uma coisa, uma parte da mulher, uma unha encravada ou um “amontoado de células”); o horrível mesmo era a indelicadeza de falar do assunto.

“Eu vou ser pai agora. Eu sei perfeitamente o que significa isso... Em nome da minha filha que vai nascer, eu me recuso a receber isso aí” – disse o ministro, escandalizado com a tentativa do senador Eduardo Girão de trazer o feto para o centro do debate sobre a legalização do aborto. Na lógica abortista, a presença do feto precisa sumir semanticamente para, em seguida, naturalizar a sua legalização. Acusando o senador de uma performance, o ministro é quem performou.

Mas a fala é uma agravante para quem tem posição favorável à legalização do aborto. O ministro disse saber perfeitamente o que significava isso. “Isso”, no caso, referia-se ao feto. Ocorre que, quando se trata de falar de sua própria realidade pessoal, o sujeito humaniza o feto, tratando-o, naturalmente, por “minha filha que vai nascer”. Essa é a atitude normal, moralmente saudável. Resta saber: por que o ministro abandona essa atitude quando está lidando com os fetos alheios, aos quais não se estende o mesmo olhar humanizador? Por que, nesse caso, o ministro se permite ser tão abstratista e generalista, como se a humanidade do feto – que ele reconhece na sua esfera privada de existência – fosse uma questão de somenos no debate sobre a legalização do aborto?

A retórica desumanizadora da agenda abortista é uma típica perversão da linguagem, caracterizada pelo uso de eufemismos para mascarar a violência política. O emprego de eufemismos é particularmente notório no desenrolar de processos históricos de crimes contra a humanidade, nos quais as práticas mais monstruosas são descritas numa linguagem burocrática, inócua e impessoal. Como escreveu a psicanalista francesa Régine Waintrater numa obra de referência sobre o tema: “Todos os genocídios estão sujeitos a esse empreendimento de eufemização”.

Em relação aos empreendimentos genocidas mais terríveis, o fenômeno foi notado, entre outros, por grandes mestres da palavra como Karl Kraus e Victor Klemperer. Em A terceira noite de Walpurgis, ensaio satírico concebido em resposta à ascensão nazista ao poder, Kraus esmiúça as aberrações linguísticas introduzidas no debate público pela propaganda nazista. Kraus desnuda os odiosos eufemismos criados por Josef Goebbels, como, por exemplo, o da “custódia protetiva” (Schutzhaft) – o instituto da prisão preventiva por tempo indeterminado, decretado após o famigerado episódio do incêndio do Reichstag, e justificado como medida de “proteção” dos próprios detidos – e o do “alinhamento” (Gleichschaltung), termo usado para se referir à conformidade forçada às diretrizes do partido.

Já em A Linguagem do Terceiro Reich, Klemperer observa que “o nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas mecanicamente”. E complementa: “O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”.

A retórica desumanizadora da agenda abortista é uma típica perversão da linguagem, caracterizada pelo uso de eufemismos para mascarar a violência política

Uma das características da linguagem nazista que chamou a atenção de Klemperer foi justamente o uso de eufemismos para nomear os crimes mais bárbaros. “Constam em meu levantamento os anúncios cheios desse eufemismo mentiroso que teve um papel tão importante na estrutura da linguagem nazista. O destino dessas vítimas não era mais trágico do que o das lebres abatidas em uma caçada” – escreve o autor, que alude em seguida ao destino da correspondência enviada às casas dos judeus removidos aos campos de concentração, no portão das quais se afixavam bilhetes com os dizeres: aqui viveu o judeu Fulano de Tal. “Então o carteiro sabia que não precisava mais se preocupar em encontrar o novo endereço; o remetente recebia a correspondência de volta com o eufemismo: Adressat abgewandert [Destinatário partiu, emigrou]. De forma que esse significado particular e cruel de abgewandert consta da linguagem do Terceiro Reich, na seção dedicada aos judeus” – conclui Klemperer.

Em relação à desumanização da retórica abortista, tudo se passa também como se o destino do feto “não fosse mais trágico que o das lebres abatidas em uma caçada” – talvez dissesse Victor Klemperer, sem saber que, para a sensibilidade contemporânea, a morte de uma lebre é, na verdade, tida por muito mais trágica que a de um bebê humano no ventre materno. Para os abortistas, tudo se passa como se o feto houvesse simplesmente abgewandert (“partido”, “emigrado”), tal como os destinatários judeus não encontrados pelo carteiro. É preferível não falar mais desses assuntos desagradáveis...

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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