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Silvio Almeida
Sílvio Almeida, demitido do Ministério dos Direitos Humanos após denúncias de abuso.| Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

O recente escândalo político envolvendo o ex-ministro dos Direitos Humanos Sílvio Almeida é um daqueles em que, por uma questão de razoabilidade, convém pressupor a culpa de todas as partes envolvidas. Quer tenha ou não cometido o assédio sexual, quer realmente o tenha sofrido ou esteja apenas inventando, Almeida e Anielle Franco, sua pretensa vítima, são atores responsáveis por criar um ambiente cultural no qual a justiça é substituída pelo denuncismo histérico, uma vez que aí já não se busca aferir condutas e responsabilidades individuais, mas lançar culpas coletivas.

O mundo construído por tipos como Sílvio Almeida e Anielle Franco – cujo microcosmo infernal era o próprio ministério em que atuavam – é um mundo que abandona a noção de direitos e deveres individuais. Aí, o indivíduo é substituído pela tribo política, vista como um microcosmo particular, com uma particular estrutura de consciência e uma linguagem própria – em suma, uma Weltanschauung, não apenas exclusiva, como irredutível. Dessa perspectiva tribal, toda a realidade está circunscrita aos objetivos políticos imediatos do grupo (ou subgrupo), os quais adquirem, portanto, uma dimensão quase metafísica. É com os antolhos da identidade coletiva que os militantes identitários olham para a realidade, julgando-a em dívida para com eles.

A lógica revolucionária é autofágica. Uma vez derrotados os inimigos externos da justiça e do bem, os “coletivos” identitários passam à guerra civil

Como crianças mimadas que, a cada birra feita, ganhassem um brinquedo novo, e sempre paparicados pela mídia e pela intelligentsia, os identitários avançam sobre a liberdade alheia a cada nova exibição de autovitimização. E, quanto mais reproduzem essa mímica grotesca do senso usual de justiça, mais convictos estão da bondade de suas almas. Tomados por autopermissividade, mais histéricos bradam aos quatro ventos a absoluta urgência da adoção da sua ética corrompida. Em transe, com os olhos vidrados de um êxtase quase religioso, lançam-se sobre os críticos, classificados naturalmente, pela própria lógica fácil do esquematismo mental que os orienta, como inimigos da justiça e do bem.

Eis por que o identitarismo é, fundamentalmente, uma corrupção político-ideológica da justiça, pela qual se julga conforme categorias coletivas previamente definidas como culpadas ou inocentes, e não de acordo com a realidade observável. Assim, se alguém classificado de antemão como inocente no tribunal da história comete alguma injustiça ou violência contra alguém classificado como culpado, a rigidez interpretativa do politicamente correto não lhe permite abandonar o critério. “Oprimidos” serão sempre “oprimidos”, mesmo quando oprimem. “Opressores” serão sempre “opressores”, mesmo quando vítimas de opressão. Racistas não são os que cometem racismo, mas os que pertencem à categoria imutável dos racistas apriorísticos e estruturais. Agressores não são os que cometem agressão, mas os que, prévia e inexoravelmente, estão inclusos na categoria dos agressores históricos (homens, brancos, cristãos, heterossexuais etc.). Portanto, para militantes identitários, os “direitos humanos” são mero pretexto para o fim que, de fato, lhes interessa: a conquista do monopólio da vitimização histórica, origem do direito revolucionário (hoje, em larga medida, convertido formalmente em lei) de impor o poder de polícia política sobre adversários.

Resta que, como é notório, a lógica revolucionária é autofágica. Uma vez derrotados os inimigos externos da justiça e do bem, os “coletivos” identitários passam à guerra civil, numa luta fratricida e intestina em que as identidades tribais se multiplicam indefinidamente. Formam-se mil e uma subdivisões cada vez mais sectárias, orgulhosas e convictas da própria superioridade moral, todas elas se colocando na condição de vítimas históricas preferenciais, portadoras, portanto, do sacrossanto direito à reparação. Tem início um processo que o crítico americano Bruce Bawer definiu muito bem como “a revolução das vítimas”, no qual triunfa quem chorar e denunciar mais. É a fase da rinha de identitários!

Sílvio Almeida é o derrotado da vez. No bingo do vitimismo, ele está em desvantagem. Pelo menos por enquanto, sua carteirada do racismo não surtiu o efeito esperado, uma vez que teve de se confrontar com uma máquina organizada (por ele, inclusive) de instrumentalização política das denúncias de violência sexual, da qual faz parte a primeira dama Janja da Silva. Com base nos casos do ator Johnny Depp e do humorista Marcius Melhem, sabe-se hoje que essa máquina não hesita em orquestrar falsas acusações de assédio sexual, e não se pode, portanto, excluir a possibilidade de que o ex-ministro seja a sua mais nova vítima.

Sílvio Almeida é o derrotado da vez. No bingo do vitimismo, ele está em desvantagem. Pelo menos por enquanto, sua carteirada do racismo não surtiu o efeito esperado

Por outro lado, uma personalidade como a do ministro, tão imbuída de superioridade moral e senso de vitimismo histórico, pode facilmente descambar para a autopermissividade. Vendo-se sempre como o cobrador de uma dívida cósmica, uma espécie de novo cátaro incorruptível pelos vícios materiais que afligem o não eleitos do apocalipse woke, não é difícil imaginar o sujeito se aproveitando sexualmente de funcionárias que, assim como toda a gente, hão de lhe dever alguma coisa.

O Cobrador é, aliás, o título de um conhecido conto de Rubem Fonseca. O personagem-título é um sujeito que, por sentir intimamente que o mundo todo lhe deve alguma coisa, se entrega à prática do mal – no caso, o assassinato em série. “Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo” – reflete o “Cobrador”, logo antes de chutar a cuia de alumínio na qual um cego pede esmolas e rumar para o próximo homicídio.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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