Em “Alice no País das Maravilhas”, a Rainha de Copas primeiro determinava a pena, e depois realizava o julgamento.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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Assim como ocorreu nos regimes totalitários do século 20, notadamente com o Partido Comunista na URSS, a mística do STF como “bastião da democracia” e “editor da sociedade” avançou à medida que o partido em forma de corte tornava-se consciente do seu isolamento e, consequentemente, da sua falta de legitimidade. E, como sói acontecer em se tratando de poder político, uma autoridade carente de legitimidade degenera necessariamente em autoritarismo. Na URSS, o resultado desse isolamento e falta de representatividade foi o Grande Terror stalinista. Hoje, no Brasil, o indiciamento de 37 pessoas (incluindo um padre) por uma pretensa tentativa de “golpe de Estado” é um corolário lógico de um desenvolvimento análogo, com um modus operandi similar à politização stalinista do direito: primeiro, apontam-se os nomes dos condenados; em seguida, fabrica-se o caso.

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Sobre o caso bolchevique, escreveu o historiador Robert Conquest em The Great Terror:

“É claro, a partir dos relatos da reunião do Comitê Central nove dias antes da Revolução de Outubro em 1917, que a ideia de insurreição ‘não era popular’ e que ‘as massas receberam nosso apelo com perplexidade’. Mesmo os relatos da maioria das guarnições foram mornos. A tomada do poder foi, de fato, quase inteiramente uma operação militar, realizada por um pequeno número de Guardas Vermelhos, apenas em parte vindos das fábricas, e um grupo maior de soldados bolchevizados. As massas trabalhadoras permaneceram neutras. Tanto então quanto na Guerra Civil que se seguiu, por ousadia e disciplina, alguns milhares de camaradas impuseram-se à Rússia, enfrentando os diversos representantes de todas as tendências políticas e sociais, com a perspectiva certa de aniquilação conjunta em caso de fracasso. Os ‘Velhos Bolcheviques’ tinham o prestígio dos anos de clandestinidade, e a visão de longo prazo que os levou a formar tal partido lhes conferiu um prestígio especial: o mito do Partido, fonte de seus quadros dirigentes até meados da década de 1930, estava na luta clandestina. Mas a força vital que forjou nesses indivíduos uma solidariedade partidária suprema foi a Guerra Civil. Do outro lado, restava apenas a ideia do Partido. O Partido, desconectado de sua justificativa social, agora repousava apenas no dogma. Tornara-se, da forma mais clássica, um exemplo de seita, de fanatismo. Assumia que o apoio popular ou proletário poderia ser dispensado e que a mera integridade de motivos seria suficiente, justificando tudo no longo prazo. Agora, sentia que representava não tanto o proletariado russo como ele existia, mas os interesses futuros e reais desse proletariado. Sua justificativa não vinha mais da política do presente, mas da política da profecia. De dentro de si mesmo, das ideias nas mentes de seus principais membros, provinham as fontes de sua lealdade e solidariedade”.

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Muito tempo antes de eventos como o 8 de janeiro, ao menos metade do eleitorado brasileiro já vinha sendo desrespeitado, debochado e criminalizado pelo tribunal eleitoral

No Brasil de 2024, o partido-corte dispensa não apenas a legitimidade do apoio popular (o que seria razoável em se tratando, em tese, de um tribunal constitucional), mas, o que é realmente grave, dispensa até mesmo as leis e a Constituição do país. Ao longo de todo o processo eleitoral de 2022, que trouxe de volta o comunopetismo ao poder, o TSE (o braço eleitoral do STF) portou-se como parceiro de um dos lados da disputa, mandando às favas a exigência de imparcialidade e isonomia. Em relação aos muitos questionamentos legítimos acerca da confiabilidade e transparência do método de sufrágio, não deu nenhuma resposta convincente, a não ser a da força bruta e a da censura. Ao longo de todo o ano de 2022 – e, a bem da verdade, desde 2018, quando seus membros não cansaram de demonstrar terem considerado ilegítima e aberrante a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro –, o partido-corte empurrou goela abaixo do eleitor brasileiro a mitologia que retratava seus quadros como heróis e guardiões de uma democracia ameaçada por terríveis vilões golpistas, os quais ousavam levantar dúvidas sobre o inescrutável processo eleitoral brasileiro. Isso tudo muito antes do 8 de janeiro.

O ativista Luís Roberto Barroso, então presidente do tribunal eleitoral, já havia profetizado a participação das Forças Armadas brasileiras no futuro arranjo golpista. Sem espelho em casa, não via problema no fato de uma corte eleitoral infestada de militantes antibolsonaristas – capazes, por exemplo, de veicular fake news a fim de debochar da legítima demanda social por mais auditabilidade no processo eleitoral –,  mas acusava aos quatros ventos uma suposta politização das Forças Armadas. Com ares de magnanimidade olímpica, convidou as Forças Armadas para integrar uma tal Comissão de Transparência Eleitoral (cujo objetivo nominal, vejam vocês, era garantir eleições mais transparentes), apenas para rejeitar nada menos que todas as recomendações feitas por uma equipe militar especializada em questões de cibersegurança. Em suma, as Forças Armadas deveriam participar do espetáculo, mas não atuar realmente no aprimoramento do processo eleitoral.

Recorde-se que, à época, uma das recomendações dos técnicos militares foi que, para o teste de integridade, as urnas eletrônicas fossem selecionadas por sorteio. A resposta dada pelo TSE? Quase um deboche. Segundo o tribunal, esse procedimento poderia ser adotado nos próximos pleitos, mas, para 2022, já havia “um combinado” para que a escolha das seções eleitorais fosse feita pelas próprias entidades fiscalizadoras. Sim, um combinado. Uma exigência básica de qualquer teste é que a amostragem do material em análise seja aleatória, e não previamente selecionada por “entidades fiscalizadoras” que, como sugere o velho adágio latino (Quis custodiet ipsos custodes?), deveriam, elas próprias, ser fiscalizadas em primeiro lugar. Mas, como já havia um combinado (entre quem?), descartou-se essa exigência com toda a naturalidade.

Como escreveu recentemente Jeff Bezos em seu próprio jornal, o Washington Post: “As máquinas de votação devem atender a dois requisitos. Elas devem contar os votos com precisão, e as pessoas devem acreditar que os votos estão sendo contados com precisão. O segundo requisito é distinto do primeiro e tão importante quanto”. Rejeitando e criminalizando todas as críticas e demandas em relação a esse requisito no Brasil, os próceres do tribunal eleitoral jamais se mostraram interessados em mais transparência, tampouco na descentralização dos mecanismos de auditoria. Ao contrário, tudo fizeram para circunscrever o processo eleitoral ao próprio tribunal, centralizando poderes, decidindo sobre o debate público e dando a palavra final sobre as opções disponíveis ao eleitor, como se as eleições fossem sua propriedade particular.

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A demanda do eleitor brasileiro pelo voto impresso auditável – uma demanda que, no passado, sempre foi suprapartidária –  adveio da percepção de que nosso sistema eleitoral é uma espécie uma caixa preta acessível apenas a técnicos especializados e funcionários de um tribunal cada vez mais político-partidarizado. Foi isso que cobriu a última eleição presidencial com um manto de desconfiança e animosidade social. Muito tempo antes de eventos como o 8 de janeiro, ao menos metade do eleitorado brasileiro já vinha sendo desrespeitado, debochado e criminalizado pelo tribunal eleitoral. Há muito já se havia decidido pela tese do golpe. “Primeiro a sentença, depois o julgamento!” – eis o mote da Rainha Louca que tem orientado o novo direito revolucionário no Brasil lulopetista.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]