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No artigo da semana passada, primeiro de uma série, introduzimos o tema dos laços históricos entre grandes expoentes do capitalismo ocidental e os movimentos revolucionários professadamente anticapitalistas, com destaque para o movimento comunista internacional. Mencionamos ali que um raciocínio estereotipado e enciclopédico, onipresente no senso comum midiático, dificulta, ou mesmo impossibilita, a percepção daqueles laços, cuja existência se afigura, pois, como contraintuitiva. Começo o artigo de hoje mencionando uma dificuldade suplementar para a adequada compreensão do fenômeno.
Em política, a receita certa para não se entender nada é adotar uma concepção subjetivista dos fenômenos em tela. Quando falamos da cooperação entre capitalistas e socialistas, e mencionamos, na condição de financiadores da agenda revolucionária da esquerda global, o nome de bilionários como David Rockefeller ou George Soros, somos impreterivelmente fulminados com a seguinte objeção: “Então você está dizendo que Rockefeller e Soros são comunistas?”
A pergunta é equívoca, exigindo uma reflexão sobre o sentido preciso do verbo “ser” nesse contexto. Pois, se a palavra pretende se aplicar às convicções íntimas de George Soros – ou àquilo que, em suma, poderíamos chamar de sua ideologia –, a pergunta não tem relevância alguma, e talvez seja impossível de responder. Ora, pouco importa saber no que esses bilionários realmente acreditam, se são comunistas no sentido específico de esposar a doutrina marxista. Provavelmente jamais saberemos com certeza algo sobre sua visão pessoal de mundo. O que basta saber é que, objetivamente, eles têm financiado os principais movimentos e organizações de esquerda radical no mundo contemporâneo. Isso, sim, é fácil de constatar.
Pouco importa saber no que Rockefeller e Soros realmente acreditam. O que basta saber é que, objetivamente, eles têm financiado os principais movimentos e organizações de esquerda radical no mundo contemporâneo
Recorde-se que, há alguns anos, quando do vazamento de informações da fundação Open Society, descobrimos que Soros financiou até mesmo o brasileiro Mídia Ninja – grupo de extrema-esquerda ligado ao PT e ao PSOL, nominalmente dedicado a fiscalizar a violência policial, e que, durante as manifestações de junho de 2013, atuou como uma espécie de departamento de propaganda do grupo terrorista Black Blocs, os camisas-negras da esquerda.
Mas, como sugerimos na semana passada, a verdade é que abundam os registros históricos da aliança entre grandes capitalistas e socialistas, aliança que, em alguns casos, foi replicada na esfera das relações exteriores, inclusive dentro do governo americano. Em 1953, por exemplo, na já mencionada Comissão Reece – criada para investigar as fundações por seu fomento à agenda comunista e revolucionária dentro dos EUA –, houve o depoimento do então presidente da Fundação Ford, Horace Rowan Gaither, que admitiu o seguinte a Norman Dodd (que atuou como chefe da investigação da Comissão Reece, publicando, no ano seguinte, um relatório sobre o caso):
“Nós tivemos experiência com o Escritório de Serviços Estratégicos [precursor da CIA] durante a guerra ou com a Administração Econômica Europeia. Nós tivemos experiência de operar sob diretrizes. As diretrizes emanam, e emanavam, da Casa Branca. Agora, ainda operamos sob tais diretrizes (...) Sr. Dodd, estamos aqui para operar em resposta a diretrizes similares, a substância das quais é que devemos usar nosso poder de concessão de doações para alterar a vida nos Estados Unidos, de modo a possibilitar que o país seja confortavelmente fundido com a União Soviética”.
Sim, o leitor não leu errado. Foi exatamente essa a proposta que, em 1953, o presidente da Fundação Ford admitiu para um investigador do Congresso norte-americano: uma fusão dos EUA com a União Soviética. Para a maioria das pessoas, essa informação é, decerto, chocante. Mas, antes que aberrante e excêntrica, a sugestão de uma possível convergência entre as duas potências do pós-guerra foi sempre abertamente aventada nos altos círculos do governo americano e também no Politburo soviético.
Ainda no auge da Guerra Fria, o tema inseria-se no projeto de uma nova ordem mundial – o projeto globalista –, em que as nações abdicariam de suas soberanias, incluindo (talvez sobretudo) o poderio militar, em favor de organizações supranacionais, como a ONU, a Unesco e a OMS. A ideia de desarmamento, tanto civil quanto militar, foi sempre parte crucial desses projetos, e não por acaso. Evidentemente, não há como enfraquecer soberanias nacionais sem enfraquecer militarmente as nações.
Há vários registros dessas discussões dentro do governo americano. Em fevereiro de 1961, por exemplo, na época em que o então presidente JFK lançou sua campanha pelo desarmamento, seu secretário de Estado, Dean Rusk – membro do Council on Foreign Relations (CFR), o famoso think tank globalista americano –, contratou um instituto de pesquisa chamado Institute for Defense Analyses (IDA), a fim de preparar um estudo sobre desarmamento e governo mundial. Em 1962, o IDA lançou um memorando (Study Memorandum 7) intitulado “Um mundo efetivamente controlado pelas Nações Unidas”, escrito por Lincoln Bloomfield, também membro do CFR e pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT), um homem cujas relações com o Departamento de Estado eram estreitas.
Em 1953, o presidente da Fundação Ford admitiu para um investigador do Congresso norte-americano a intenção de uma fusão dos EUA com a União Soviética
O relatório do IDA é interessantíssimo, sobretudo porque nele Bloomfield exprime-se com honestidade, sem apelar para os eufemismos habituais da retórica diplomática, onipresentes nos documentos redigidos por defensores da nova ordem mundial. Só o texto de abertura já bastaria para cobrir de ridículo todo aquele ignorante para quem o globalismo – a ideia de um governo mundial – não passa de “teoria da conspiração”:
“O mundo efetivamente controlado pelas Nações Unidas é um mundo no qual o ‘governo mundial’ surgirá do estabelecimento de instituições supranacionais, caracterizadas por uma participação obrigatória e abrangência universal, bem como por alguma habilidade para empregar força física. O controle efetivo implicaria, portanto, uma preponderância do poder político nas mãos de uma organização supranacional, e não em unidades nacionais individuais, e assumiria a operação efetiva de um acordo de desarmamento geral. Embora essa organização supranacional – as Nações Unidas – não seja necessariamente a organização que existe agora, a presente Carta das Nações Unidas poderia teoricamente ser revisada de modo a erigir uma tal organização, condizente com a tarefa contemplada, produzindo, desse modo, um rearranjo radical do poder no mundo”.
Em outro trecho, o autor, professor Bloomfield, afirma o seguinte:
“A noção de um ‘mundo controlado pela ONU’ é hoje tida por fantástica (...) Cientistas políticos geralmente ficam desesperados e dão saltos quânticos sobre a ideia de ordem mundial, tida por utópica e desconectada das realidades políticas. Mas mentes arejadas da vida militar, científica e industrial, ao focarem na cada vez mais irracional corrida armamentista, têm frequentemente concluído que a lógica do governo mundial – e é de governo mundial que estamos falando aqui – é inescapável.”
Note-se que a ideia de “governo mundial” é manifesta com todas as letras. O autor cita ainda um discurso de Christian Herter, secretário de Estado do presidente Eisenhower, proferido em 18 de fevereiro de 1960 no National Press Club. Segundo Bloomfield, Herter defendia a criação de regras universalmente aceitas e apoiadas por uma corte internacional com meios efetivos de imposição (“por forças armadas internacionais”) e o desarmamento propriamente dito, “até o ponto em que nenhuma nação individual ou grupo de nações possam oferecer oposição efetiva a essa imposição do direito internacional pelo maquinário internacional”. Comentando sobre a declaração, diz Bloomfield:
“Aqui, então, está a base, na recente da política americana, da noção de um mundo ‘efetivamente controlado pela ONU’. Não foi explicitado, mas a posição dos Estados Unidos tinha um sentido inequívoco, não importa por qual nome, de um governo mundial, suficientemente poderoso em qualquer momento para manter a paz e impor seus julgamentos”.
A seguir, como se ainda não tivesse ficado suficientemente claro, Bloomfield faz questão de precisar o significado de cada um dos termos usados no título do relatório:
“‘Mundo’ significa que o sistema é global, sem exceção à sua ordem: a pertença é universal. ‘Controlado efetivamente’ denota atributos de governo – um monopólio relativo do uso da força física no centro do sistema, e, portanto, uma preponderância do poder político nas mãos de uma organização supranacional em lugar de unidades nacionais individuais. ‘As Nações Unidas’ não são necessariamente a organização que existe agora. Em teoria, um rearranjo radical do poder no mundo poderia ser codificado mediante revisão da Carta da ONU existente (como no Plano Clark-Sohn); ou uma nova constituição poderia ser desenhada. Finalmente, para evitar o eufemismo sem fim e a verborragia evasiva, o regime contemplado será referido ocasionalmente de forma desavergonhada como um ‘governo mundial’”.
Bloomfield repisa os pontos essenciais do projeto. Um deles é que “o desarmamento nacional é uma condição sine qua non para o controle efetivo da ONU”. Sem o desarmamento dos países, esse controle não é possível. Além disso, “o ponto essencial é a transferência do elemento mais vital do poder soberano dos Estados para um governo supranacional”. Ainda segundo o autor, “o fato central acachapante seria a perda de controle do seu poder militar pelas nações individuais”.
Lembro ao leitor mais uma vez: o documento “Um mundo efetivamente controlado pelas Nações Unidas” foi preparado pelo IDA por encomenda do Departamento de Estado americano. E, como veremos no artigo da semana que vem, o governo americano continuou promovendo estudos nesse sentido, muitos dos quais falando abertamente em desarmamento internacional e fusão com a União Soviética.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos