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No artigo anterior, mencionamos o documento “Um mundo efetivamente controlado pelas Nações Unidas”, produzido em 1961 pelo Institute for Defense Analyses (IDA) a pedido do Departamento de Estado americano. Dois anos depois, em 1963, um estudo similar foi encomendado pela Agência Americana de Desarmamento e Controle de Armas (ACDA) a um instituto de pesquisa privado chamado The Peace Research Institute. Autorado por Walter Millis, um típico filho da Universidade de Yale, e então diretor do estudo sobre desarmamento do Fund for the Republic (organização criada pela Fundação Ford), o estudo saiu com o título The Political Control of an International Policy Force.
Entre outras coisas um tanto quanto perturbadoras, o autor afirmava o seguinte: “Quer admitamos ou não, beneficiamo-nos enormemente da capacidade do sistema soviético de polícia em manter a lei e a ordem sobre mais de 200 milhões de russos e mais outras milhões de pessoas, se incluirmos os Estados satélites... Hoje, o colapso do império comunista russo levaria, sem dúvida, a mais liberdade; no entanto, ele também seria catastrófico para a ordem mundial”.
Também em 1963, a ACDA encomendou ao mesmo IDA – instituto que produzira o relatório “Um mundo efetivamente controlado pelas Nações Unidas”– um estudo que sugeria abertamente uma convergência entre EUA e URSS. Autorado por Vincent P. Rock, o estudo chamava-se Common Action for the Control of Conflict: An Approach to the Problem of International Tension and Arms Control. A íntegra do documento foi mais tarde reproduzida no livro The Phoenix Papers; If Not Treason, What?, de James D. Bales (1966).
Alguns dos mais notórios globalistas – Rockefeller, Morgan, Carnegie, entre outros – promoveram com afinco o fortalecimento das organizações supranacionais
Em 13 de maio de 1964, o documento foi citado na House of Representatives (equivalente americano da nossa Câmara dos Deputados) por Glenard P. Lipscomb, congressista republicano da Califórnia, que observou com muita perspicácia: “Senhor presidente, temos ouvido mais e mais o que acredito serem esforços míopes para apaziguar a União Soviética, segundo a equivocada crença de que os homens do Kremlin abandonarão o seu objetivo de um mundo comunista se os ajudarmos a fortalecer sua economia” (Congressional Record House, p. A2527-A2528, parte 25, vol. 110).
Um trecho do documento diz o seguinte: “Unificação: no presente, essa abordagem pode parecer muito radical e será descartada a priori. No entanto, a sua lógica é muito simples e é estranho que ainda não tenha sido compreendida por muita gente (...) Hoje, os Estados Unidos e a União Soviética, combinados, detêm, para propósitos práticos, quase o monopólio da força no mundo. Se o uso e a direção desse poder puderem, de alguma maneira, ser sincronizados, sem dúvida nós alcançaríamos a estabilidade e unidade em um futuro muito próximo”.
Deve-se lembrar, ademais, que tudo isso acontece num contexto em que os Estados Unidos (além do Reino Unido e outros países do Ocidente) começaram a transferir muita tecnologia, dinheiro e know how científico para a URSS, sempre com a crença liberal, de um triunfalismo para lá de ingênuo, de que o desenvolvimento econômico e tecnocientífico abriria o caminho para a liberalização política do regime comunista. Além da obra de fôlego do historiador britânico Antony Sutton, que tratou do tema numa série de livros clássicos, há outros trabalhos interessantes, como, por exemplo, The Secret War for the A-Bomb, de Medford Evans; Red Carpet, de Joseph Finder (cujo título em trocadilho alude à extensão do tapete vermelho para a União Soviética); e Vodka-Cola, de Charles Levinson, que tem tradução para português, pela editora Publicações Europa-América (1977), com o subtítulo “A oculta cumplicidade entre dois mundos”.
No que diz respeito especificamente ao Sistema ONU, sabe-se que alguns dos mais notórios globalistas – Rockefeller, Morgan, Carnegie, entre outros – promoveram com afinco o fortalecimento das organizações supranacionais, de modo a criar condições para aquilo que esses barões do capitalismo nunca hesitaram em chamar de Nova Ordem Mundial. Mas, por paradoxal que possa soar, esse fortalecimento foi também um dos objetivos principais do movimento comunista internacional desde os seus primórdios.
Antes mesmo da revolução bolchevique, por exemplo, Lenin já afirmara, em 1915, que o internacionalismo comunista deveria assumir a forma de uma espécie de Estados Unidos do Mundo – uma grande federação de países sob o comando da União Soviética. Na década de 1930, no programa oficial da Internacional Comunista, lia-se a seguinte resolução: “a ditadura só pode se estabelecer por meio de uma vitória do socialismo em diferentes países ou grupos de países. Depois, as repúblicas proletárias deverão se unir federativamente às que já existem, e esse sistema de uniões federativas vai se expandir até a formação de uma união mundial de repúblicas socialistas soviéticas”. Pouco tempo depois da fundação da ONU, ninguém menos que Joseph Stalin rasgava elogios à organização. Em artigo publicado no Pravda em 1946, o ditador soviético dizia o seguinte: “Atribuo grande importância à ONU, dado que é um importante instrumento para a preservação da paz e da segurança internacional”.
O fortalecimento das organizações supranacionais foi também um dos objetivos principais do movimento comunista internacional desde os seus primórdios
Apesar de, novamente, alguns jornalistas-humoristas brasileiros afirmarem não haver esquerda nos Estados Unidos, sempre foi sólida a presença do Partido Comunista na América. Entre os anos 1930 e 1940, tratava-se de um dos partidos comunistas mais organizados do mundo. No período, não foram poucos os camaradas americanos a manifestar apoio entusiasmado à ONU e às propostas de internacionalização, integração mundial e interdependência. William Z. Foster, presidente nacional do Partido Comunista nos Estados Unidos, escreveu o seguinte no livro Toward Soviet America, de 1932:
“O governo soviético americano irá juntar-se com os outros governos soviéticos numa União Soviética global (...) Não é o cristianismo, mas o comunismo que trará a paz mundial. Um mundo comunista será um mundo unificado e organizado. O sistema econômico será uma grande organização, baseada no princípio de planejamento central, ora em vigência na União Soviética. O governo soviético americano será uma importante sessão dessa organização mundial.”
Já em 1942, em plena guerra, o secretário-geral do Partido Comunista americano, Earl Browder, escreveu um livro chamado Victory – and After, no qual conta como os comunistas americanos se empenharam no processo de idealização da ONU, que só viria a surgir três anos depois da publicação da obra. Nas palavras de Browder:
“Os comunistas americanos trabalharam enérgica e incansavelmente para avançar as fundações das Nações Unidas, de cuja existência futura estamos convictos (...) Pode ser dito, sem exagero, que relações sempre mais próximas entre a nossa nação e a União Soviética são um requisito indispensável para as Nações Unidas enquanto coalizão mundial (...) A confiança mútua entre o nosso país e a União Soviética e a colaboração com as lideranças das Nações Unidas são absolutamente necessárias”.
Na revista do Partido Comunista americano, Political Affairs, lia-se o seguinte na edição de abril de 1945:
“Depois que a carta passar em São Francisco, terá de ser aprovada por dois terços do Senado, e essa ação estabelecerá um precedente de peso para outros tratados e acordos vindouros. Mas a vitória não poderá ser obtida apenas no Senado; ela deve emanar de um apoio nacional organizado e cada vez mais amplo, erguido ao redor das políticas do presidente, tanto antes quanto depois da reunião em São Francisco (...) Um forte apoio popular e o entusiasmo pelas políticas das Nações Unidas devem ser incentivados e organizados. Mas é preciso ir além. A oposição ao projeto deve ser mantida tão impotente a ponto de não conseguir reunir qualquer apoio significativo no Senado contra a Carta e os tratados vindouros” (“The World Assembly at San Francisco”).
Portanto, houve sempre uma relação muito próxima entre a ONU e os comunistas, notadamente os norte-americanos, cuja atuação foi decisiva no processo de consolidação da organização, angariando apoio popular ao projeto e ao conteúdo da Carta das Nações Unidas. Mas, em paralelo ao trabalho de base da militância do partido, ocorria na época um fenômeno muito mais grave, que parece coisa de filme: a infiltração de espiões soviéticos nas altas esferas do poder em Washington. Seguiremos daí na semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos