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Sabe-se hoje que alguns dos principais artífices da ONU (integrantes do Departamento de Estado e do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos) foram espiões soviéticos, a começar pelo secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, que resultou na redação da Carta das Nações Unidas: ninguém menos que o senhor Alger Hiss.
Desde 1944, Hiss era o diretor do Escritório de Assuntos Políticos Especiais (Office of Special Political Affairs) do Departamento de Estado dos EUA, órgão responsável pelo planejamento das organizações internacionais do pós-guerra. Atuou como secretário-executivo da Conferência de Dumbarton Oaks, em Washington D.C., na qual foram delineados os planos da futura ONU. Foi também o secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional (realizada de 25 de abril a 26 de junho de 1945, em San Francisco), na qual os textos acordados em Dumbarton Oaks foram revistos, resultando na Carta das Nações Unidas.
Só no fim dos anos 1980, com o processo de dissolução nominal do comunismo, com a queda do Muro de Berlim, os comunistas começaram a sofisticar o linguajar e adotar a retórica contemporânea das organizações internacionais
Sua atividade de espionagem veio à tona a partir de denúncia de um ex-companheiro de célula partidária, Whittaker Chambers. A denúncia resultou em processo, num caso notório e escandaloso. Hiss foi julgado duas vezes pelo júri popular e condenado, em janeiro de 1950, a cinco anos de prisão, tendo sido forçado a deixar a presidência do think tank Carnegie Endowment for International Peace, função que havia assumido em 1946, após deixar seu cargo no Departamento de Estado.
Mas Hiss não foi o único. Num dos artigos da minha série sobre globalismo e comunismo, publicada na Gazeta do Povo em maio do ano passado, cito outros personagens decisivos na fundação da ONU, ocupantes de altos cargos no governo americano e, posteriormente, também desmascarados como espiões ou colaboradores soviéticos, nomes como Solomon Adler, Virginius Frank Coe, Lawrence Duggan, Noel Field, Harold Glasser, Irving Kaplan, Victor Perlo, Abraham G. Silverman, Nathan G. Silvermaster, William H. Taylor, William L. Ullman, John Carter Vincent, Henry Julian Wadleigh, David Weintraub e Harry Dexter White.
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Na época da fundação da ONU, e até mais ou menos os anos 1980, o vocabulário adotado pelos comunistas era ainda muito marcado pelo cânon soviético, a terminologia oficial adotada pela Nomenklatura. Foi só no fim dos anos 1980, com o processo de dissolução nominal do comunismo, com a queda do Muro de Berlim, é que os ideólogos do partido começaram a sofisticar o linguajar e adotar a retórica contemporânea das organizações internacionais – menos marcada ideologicamente, mais abstrata e universalista. A partir de então, as formulações clássicas sobre a ditadura do proletariado (que, em momentos anteriores, já tinham sido atenuadas ou disfarçadas) começam a ser abandonadas em favor de discursos genéricos sobre o bem comum, a segurança de toda a humanidade, a defesa do clima, a saúde pública etc. E, com efeito, não há hoje iniciativa globalista – inclusive as mais autoritárias – que não venha embalada nesse simbolismo universalista e humanista.
Surge, então, a Perestroika – processo que, tradicionalmente, ficou conhecido como uma liberalização e uma abertura dos regimes comunistas. No livro que escreveu sobre o projeto, Gorbachev ilustra bem essa mudança de vocabulário. “É minha convicção que a raça humana alcançou um estado em que somos todos dependentes uns dos outros” – diz num certo trecho. Alguns conceitos-chave começam a aparecer o tempo todo na fala e nos escritos dos comunistas: interdependência, convergência, bem comum da humanidade etc. “Nenhum país, nenhuma nação deveria ser considerada de forma isolada das outras, muito menos oposta às outras. É o que o nosso vocabulário comunista chama de internacionalismo, o que significa o anseio em promover os valores humanos universais” – continua a velha raposa russa.
O suposto fim do comunismo não foi obra de liberais conservadores, nem da democracia ocidental, e muito menos do capitalismo. Foi, em vez disso, resultado de uma profunda reforma interna
Nos meios conservadores e liberais do Ocidente, há ainda quem acredite na história da carochinha segundo a qual o comunismo acabou graças a uma inevitável superioridade intelectual e moral das democracias liberais. A versão mais conhecida dessa história é a que chamo de Mito da Trindade, uma exaltação de três personalidades ocidentais – Ronald Reagan, o papa João Paulo II e Margaret Thatcher – que, praticamente sozinhas, teriam derrotado o comunismo internacional. Exemplo clássico de difusão do mito é o livro O Presidente, o Papa e a Primeira-Ministra: três que mudaram o mundo, de John O’Sullivan, jornalista conservador e thatcherista. Sem prejuízo ao nobre papel que, de fato, as três grandes figuras desempenharam na luta contra a tirania comunista, a questão é que essa mitologia heroica e triunfalista desconsidera uma série de fatores, em especial a exata dimensão das reformas internas promovidas pelos dirigentes soviéticos.
Consagrado nos meios liberais e conservadores, o Mito da Trindade parte de uma premissa meta-histórica que, curiosamente, é progressista em essência: a ideia de que a história humana é um progresso inexorável a caminho da razão e da civilização; de que todas as divergências políticas e ideológicas decorrem de um atraso civilizacional e de que, um dia, com o passar do tempo, serão simplesmente superadas, mediante o uso racional das nossas faculdades intelectuais e morais.
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Quem acredita na tese, naturalmente, tende a se ver como estando no pináculo da evolução humana. Toda a ilusão liberal acerca de um pretenso “fim da história” deriva dessa premissa. O problema é que, concebendo o inimigo como atrasado (ou seja, uma espécie de versão anterior de mim mesmo), os adeptos dessa mitologia autolisonjeira terminam não compreendendo o inimigo naquilo que tem de realmente distinto e singular. Trata-se da confusão progressista clássica entre alteridade e anterioridade. O outro é visto como um mesmo, apenas que ultrapassado. E essa falta de compreensão do inimigo em sua alteridade plena – sabemos desde Sun Tzu – é a receita infalível para se perder a guerra.
Hoje, por meio da análise dos arquivos de Moscou, e de muitas obras dedicadas ao tema, já não restam dúvidas de que o suposto fim do comunismo não foi obra de liberais conservadores, nem da democracia ocidental, e muito menos do capitalismo. Foi, em vez disso, resultado de uma profunda reforma interna, uma das tantas pelas quais o comunismo passou ao longo do tempo, sempre se metamorfoseando e se adaptando a novas circunstâncias. Antes que queda, deveríamos, talvez, passar a falar em implosão do comunismo. Os principais líderes comunistas – a começar pelo próprio Lenin – tiveram sempre uma concepção pragmática – e não dogmática – da ação política, e souberam iludir o inimigo quanto à sua pretensa fraqueza. Retomaremos o assunto na próxima semana.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos