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Encerramos o artigo anterior questionando a narrativa triunfalista sobre o fim do comunismo, que, segundo liberais e conservadores autoiludidos, teria “caído”, qual uma fruta podre, diante da superioridade (técnica, econômica e até moral) do capitalismo. Sugerimos que, mais do que uma queda, o processo ocorrido na URSS e no Leste Europeu em fins dos anos 1980 deve ser mais bem compreendido como uma espécie de implosão controlada, arquitetada por grandes estrategistas políticos.
Se pensarmos, por exemplo, no que Gorbachev escreve em Perestroika, o livro, o triunfalismo liberal-conservador soa cômico, até mesmo pueril. Logo no primeiro capítulo, alerta-se ao leitor:
“Existem pessoas, no Ocidente, que gostariam de nos fazer crer que o socialismo atravessa uma crise profunda por haver conduzido nossa sociedade a um impasse. É dessa forma que eles interpretam nossa análise crítica da situação do fim dos anos 70 e começo dos anos 80. Nós só temos um objetivo, dizem eles: adotar os métodos de gestão econômica capitalistas e seus modelos sociais; em outras palavras, nos dirigir ao capitalismo (...) Para pôr um fim a esses rumores e especulações que se multiplicam no Ocidente, gostaria uma vez mais de ressaltar que nós conduzimos todas as nossas reformas em conformidade com a via socialista. É no contexto do socialismo, e não fora dele, que buscamos as respostas a todas as questões que se colocam. É em função desses critérios que avaliamos tanto nossos êxitos quanto nossos erros. Aqueles que esperam que nos afastemos da via socialista se decepcionarão profundamente. Cada elemento do programa da perestroika – e o programa em seu conjunto – se funda inteiramente na ideia de que é necessário mais socialismo, mais democracia (...) Estamos nos dirigindo a mais socialismo, e não o contrário. Nós o declaramos honestamente, sem tentar enganar nem nosso povo e nem o resto do mundo. Toda esperança que possamos ter de construir uma sociedade diferente, não-socialista, e passar ao outro campo é irrealista e insignificante. Aqueles, no Ocidente, que esperam que abandonemos a via socialista se desapontarão”.
Mais do que uma queda, o processo ocorrido na URSS e no Leste Europeu em fins dos anos 1980 deve ser mais bem compreendido como uma espécie de implosão controlada, arquitetada por grandes estrategistas políticos
Gorbachev tinha uma compreensão muito aguda das ilusões liberais. Em 6 de janeiro de 1988, diante de representantes da ciência e da cultura reunidos no Comitê Central do Partido Comunista da URSS, o último líder soviético se defendeu de críticas ao projeto de “abertura” do regime, projeto que muitos consideravam mal concebido. “Como assim mal concebido?” – exaltou-se Gorbachev. “O plano havia sido muito bem estudado, e isso muito antes de 1985: 110 estudos e projetos foram então apresentados ao Comitê Central por diversas grandes cabeças. Tudo remonta a uma época bem anterior à Plenária de Abril”. Por “Plenária de Abril”, o líder soviético referia-se à Plenária do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética de 1985, na qual se apresentara oficialmente o projeto da Perestroika.
Com efeito, as primeiras elaborações do que depois ficaria conhecido como a “nova mentalidade” soviética – pretensamente mais aberta, mais liberal etc. – datam do fim dos anos 1970, bem antes de Gorbachev, que, portanto, apenas herdou um programa reformista em andamento. Importantes intelectuais orgânicos do regime já vinham concebendo essa missão de reformar o comunismo, com vistas a dar um novo norte filosófico para a URSS pós-stalinista. O projeto consistia, basicamente, num renouveau intelectual do leninismo, e incluía diversas instituições acadêmicas (como, por exemplo, a Escola Internacional Lenin, reaberta em 1964) e publicações intelectualmente sofisticadas, como os jornais Questões de Filosofia (Voprosy Filosofii) e Questões de Economia (Voprosy Ekonomiki). Toda essa enorme estrutura reformista era controlada pelo Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista, sob o comando de Yuri Andropov, que à época acumulava também a chefia da KGB.
Testemunho precioso desse processo de reforma interna, pouco conhecido no Ocidente, é o de Evgeny Novikov, prestigiado intelectual orgânico do regime, integrante daquele mesmo Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista. Seu livro Gorbatchev and the Collapse of the Soviet Communist Party é leitura obrigatória para quem quer que ainda mantenha a ilusão de que a força irresistível do capitalismo foi a causa principal do colapso do comunismo na URSS. Na obra – coautorada pelo padre católico Patrick Bascio –, o ex-membro do Politburo soviético afirma o seguinte:
“O colapso do Partido Comunista soviético não foi um acidente da história nem o súbito resplandecer da democracia. Ao contrário, foi o resultado de um plano minuciosamente preparado, concebido pela elite do Partido e executado pela direção de um departamento secreto do Comitê Central, o Departamento Internacional [do qual, repito, o próprio Novikov foi membro]”.
Mais relevante ainda é o testemunho do ex-oficial da KGB Anatoliy Golitsyn, tão importante como dissidente soviético que James Angleton, ex-chefe de contrainteligência da CIA, descreveu-o como “o mais valioso desertor a pisar no Ocidente”. Em seu primeiro e mais conhecido livro, New Lies for Old, Golitsyn chamou a atenção para como o Ocidente compreende mal as mudanças ocorridas no mundo comunista. No mais das vezes, mesmo os mais prestigiados “sovietólogos” revelavam-se incapazes de apreender a natureza dialética do pensamento estratégico comunista, tornando-se presas fáceis das campanhas de desinformação conduzidas pelos órgãos soviéticos de espionagem e propaganda. No livro, concebido e redigido em meados dos anos 1980, Golitsyn faz uma série de previsões acertadas sobre o que aconteceria nos anos seguintes, incluindo a pretensa liberalização do Leste Europeu, a queda do Muro de Berlim, a reunificação da Alemanha, a reforma da KGB e a dissolução do Pacto de Varsóvia.
Já no fim dos anos 50, um dos pontos essenciais do programa reformista de Alexander Shelepin na KGB era a projeção internacional de uma imagem de fragilidade do bloco soviético
Em The Perestroika Deception, seu segundo livro, o ex-oficial de inteligência aprofunda a análise anterior. Como integrante do pequeno círculo de executores do projeto reformista, Golitsyn foi testemunha ocular, e relata como, no fim dos anos 1950, o então chefe da KGB, Alexander Shelepin, foi mentor de uma importante mudança de orientação no serviço secreto soviético. Na época de Stalin, a agência dedicara-se especialmente à repressão política interna, com ênfase na espionagem de dissidentes. Já com Shelepin, criou-se algo como uma “KGB dentro da KGB”, que, menos dedicada às funções habituais, convertia-se então em arma política bem mais sofisticada, dedicada à desinformação para o público externo, com o objetivo de influenciar os processos de tomada de decisão nos países ocidentais. Segundo Golitsyn, um dos pontos essenciais do programa reformista de Shelepin era a projeção internacional de uma imagem de fragilidade do bloco soviético. Golitsyn cita Georgy Arbatov, prestigiado acadêmico soviético, e um dos idealizadores da Perestroika:
“A imagem do inimigo que está desaparecendo foi absolutamente necessária à política externa e militar dos Estados Unidos e seus aliados. A destruição desse estereótipo é a arma de Gorbatchev (...) Uma grande guinada foi dada nas relações internacionais, e, no entanto, algumas pessoas não estão prontas para tanto (...) Por enquanto, a coisa mais terrível que pudemos fazer foi tê-las privado da imagem do inimigo”.
Segundo Arbatov, os EUA tomavam decisões de política externa baseados numa imagem estereotipada da URSS. E, ao desfazer essa imagem, Gorbachev teria conquistado uma vantagem estratégica sobre o Ocidente. O conceito de “imagem do inimigo” é recorrente entre os principais ideólogos da Perestroika. Ideólogos como Eduard Shevardnadze, chanceler de Gorbachev, e principal teórico da “abertura”. No livro O futuro pertence à liberdade, “Sherva” (como era conhecido) afirma o seguinte:
“A imagem do inimigo havia invadido a consciência de milhões de pessoas em todas as partes do mundo. Apagar, destruir essa ‘imagem’ é talvez o objetivo mais importante num contexto de evolução mundial, no qual se aproximam e se erguem à máxima altura os autênticos inimigos da humanidade que são a guerra nuclear, a catástrofe ecológica ou a desintegração do sistema econômico mundial”.
O abandono do comunismo ortodoxo em favor das pautas globalistas era, portanto, parte essencial do plano de desfazer a tradicional “imagem do inimigo”. Portanto, o que acabou ali, na virada dos anos 1980 para os 1990, foi menos o comunismo do que a sua imagem, com a qual o Ocidente estava habituado. E, com o fim dessa imagem, o inimigo (i.e., as democracias capitalistas ocidentais) ficou desorientado, situação agravada pela já referida autoilusão liberal-conservadora, baseada na fantasia triunfalista – e progressista! – de que o capitalismo era uma força civilizatória irresistível, o destino manifesto de todas as nações do planeta. Seguiremos daí na semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos