A ideia de uma síntese entre capitalismo e comunismo – da qual falamos no artigo anterior – surgira há tempos na mente de Mikhail Gorbachev. É o que conta Anatoly Chernyaev, chanceler soviético no fim da década de 1980. Num dos seus diários pessoais – doados, nos anos 2000, para o Arquivo de Segurança Nacional da George Washington University – Chernyaev escreve: “Ele [Gorbachev] interpretou a ideia de coexistência como a adaptação mútua entre o capitalismo e o socialismo, não apenas como uma abordagem realista para a política internacional no nível estatal. Isso é algo novo!”
No contexto dessa “novidade” surgida na mente soviética, houve em 1989 um encontro emblemático entre membros da Comissão Trilateral e Gorbachev. Fundada em julho de 1973 pelo bilionário David Rockefeller e o acadêmico Zbigniew Brzezinski (que, mais tarde, viria a ser conselheiro de Segurança Nacional de Jimmy Carter), a Comissão era, formalmente, uma entidade privada. Ao menos, era assim que a apresentavam os seus integrantes, figuras influentes dos mundos político e financeiro dos EUA, Europa e Japão. Seu objetivo era influenciar políticas públicas em todo o mundo, orientando-as segundo a cosmovisão de seus fundadores, que entretinham a utopia de uma nova ordem mundial na qual os Estados-nação abdicassem de sua soberania em favor das decisões “técnicas e científicas” tomadas por “autoridades especializadas” (não eleitas) de organizações supranacionais como ONU, Unesco, OCDE e OMS. A ideologia da Comissão havia sido antecipada por Brzezinski em Between Two Ages: America’s Role in the Technetronic Era, de 1970, livro no qual o intelectual globalista expunha a sua filosofia positivista-teleológica da história, francamente contrária à ideia de democracia representativa, e muito próxima da epistocracia proposta por alguns intelectuais globalistas contemporâneos.
David Rockefeller e Zbigniew Brzezinski entretinham a utopia de uma nova ordem mundial na qual os Estados-nação abdicassem de sua soberania em favor das decisões “técnicas e científicas” tomadas por “autoridades especializadas” (não eleitas) de organizações supranacionais
Ocorrido em Moscou, do encontro fizeram parte o próprio Rockefeller, fundador da Comissão, o diplomata americano Henry Kissinger, o ex-primeiro-ministro japonês Yasuhiro Nakasone e o ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, que discutiram com o líder soviético projetos para a integração europeia. Parte do conteúdo da conversa está descrito em EUSSR: the Soviet Roots of European Integration, livro do dissidente soviético Vladimir Bukovsky, aqui mencionado na semana passada. Graças a ele, ficamos sabendo que, a certa altura do encontro, Giscard d’Estaing pediu a palavra e informou o seguinte a Gorbachev:
“Em nossos dias, a Europa ocidental está vivendo a sua própria perestroika, mudando as suas estruturas. É difícil saber exatamente o que irá se passar daqui a cinco, dez ou vinte anos, mas uma nova forma de Estado federativo irá surgir. É nessa direção que estamos indo; e a União Soviética deve-se preparar para se relacionar com um único grande Estado da Europa Ocidental.”
Henry Kissinger interveio, mostrando-se muito entusiasmado com a proposta, e insistindo na participação americana. Disse Kissinger a Gorbachev: “O que você acha de um conceito de uma ‘Europa do Atlântico aos Urais’? (...) Eu e meus colegas da Comissão Trilateral queremos contribuir de modo construtivo para edificar essa Europa, em relação à qual tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos devem desempenhar um papel positivo similar”.
É importante notar que toda essa conversa aconteceu anos antes, por exemplo, do Tratado de Maastricht (que criou a União Europeia), do Tratado de Amsterdã, do Tratado de Nice e da própria Constituição europeia. Portanto, Gorbachev e seus parceiros da Comissão Trilateral não estavam apenas discutindo ideias, de modo abstrato, mas formulando um ambicioso plano geopolítico, plano que, dali a pouco tempo, seria efetivamente implementado. Uma das metas traçadas no encontro foi, justamente, o projeto pan-europeísta que Gorbachev chamava de “Casa Comum Europeia”, e que, para todos os envolvidos, deveria servir como uma primeira experiência em governo mundial. Como disse certa vez Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC e ex-presidente da Comissão Europeia: “Dentre tantas tentativas de integração regional, a UE permanece sendo o laboratório da governança internacional – o lugar onde a nova fronteira tecnológica da governança internacional está sendo testada”.
Outras conversas de bastidores são mencionadas no livro de Bukovsky. Numa delas, os interlocutores falam abertamente daquilo que, no Brasil, jornalistas semialfabetizados insistem em tratar como teoria da conspiração: a ideia de governo mundial. Em 25 de outubro de 1990, por exemplo, Gorbachev encontrou-se em Buenos Aires com Carlos Menem, então presidente da Argentina. Deu-se entre os dois o seguinte diálogo:
Gorbachev – “Temos de ir além. O progresso futuro dependerá de ações na Europa, na América Latina, na Ásia e no Pacífico. Depois de construída a Casa Europeia, novas casas comuns devem surgir.”
Menem – “Sobre a integração, creio que todos concordam. Nós da América Latina pretendemos agir na mesma linha da Europa. Em geral, a humanidade não tem outra opção, e então, depois da integração, concentraremos esforços na conquista do universo.”
Gorbachev – “Um dos meus assessores escreveu há algum tempo que precisaríamos criar um governo mundial. Houve na época quem risse, mas, agora?”
Menem – “Há cerca de 40 anos, Perón falava em continentalismo, o que nos permitiria partir para o governo mundial.”
Gorbachev – “Penso que devemos reforçar o papel da ONU. Por 40 anos ela não pôde realizar o seu potencial, mas hoje temos a oportunidade. Eis aqui, para você, o protótipo de governo mundial.”
Ao mesmo tempo em que conduzia essas conversas íntimas e definidoras, em público Gorbachev construía a Perestroika e descontruía a antiga “imagem do inimigo”. A estratégia ia de vento em popa. Falando para o exterior, a velha raposa russa recorria a um vocabulário globalista novo em folha. Falando para os seus camaradas, todavia, continuava fiel ao pragmatismo leninista.
A importância do legado leninista foi, aliás, sempre reafirmada. Gorbachev admirava sobremaneira a capacidade do camarada Ulianov de não se aferrar a dogmas marxistas. Como registra Chernyaev em seu diário: “[Gorbachev] via a principal virtude de Lenin no fato de estar pronto para desconsiderar qualquer dogma pelo bem da missão, pelo bem da revolução real, concreta”. Em Perestroika, Gorbachev escrevera:
“[Lenin] via que o socialismo iria se defrontar com problemas colossais, e que deveria resolver toda sorte de dificuldades que a revolução burguesa havia deixado sem solução. Daí sua utilização de métodos que não parecem intrinsecamente socialistas ou que, ao menos, se afastam em certa medida dos conceitos clássicos do desenvolvimento socialista, tais como geralmente aceitos (…) [Lenin] possuía o raro talento de sentir, no momento certo, a necessidade de mudanças profundas, de um reexame dos valores, de uma revisão das diretivas teóricas e dos slogans políticos.”
Assim como outros globalistas, Gorbachev aproveita-se da Covid-19, para, mais uma vez, reforçar a sua agenda de “integração”
Sobre a Perestroika, Gorbachev admite abertamente ter se inspirado na Nova Política Econômica (NEP), lançada por Lenin em 1921, quando a Rússia estava na iminência de um colapso econômico e social, do qual foi salva graças à benevolência do Ocidente. Com a NEP, Lenin foi pioneiro no uso da tática de desinformação que consiste em aparentar fragilidade aos olhos do Ocidente, simulando uma abertura e uma transformação interna do regime.
Gorbachev nunca desistiu de seu projeto globalista particular. Em artigo recente na revista Time, por exemplo, insiste em falar de integração e, sobretudo, de desarmamento – que, como vimos, é requisito fundamental para todo projeto de “governança global”. Ao nível internacional, os exércitos das nações devem ser desarmados. Ao nível infranacional, as polícias devem ser enfraquecidas. E, tanto num quanto no outro, as lideranças globalistas defendem que o orçamento militar seja drasticamente reduzido (não é por acaso que alguém como George Soros invista tão pesadamente na agenda desarmamentista e antipolícia).
Assim como outros globalistas, o líder comunista aproveita-se da Covid-19, para, mais uma vez, reforçar a sua agenda de “integração”. Segundo ele, o mundo pós-pandemia será totalmente diferente, ainda mais interdependente, e no qual as velhas noções de soberania deverão ser abandonadas. Para Gorbachev, além de uma unificação geopolítica, o mundo precisa desenvolver uma espiritualidade universal, pretensamente ecumênica, e de sabor panteísta. Seguindo a linha gramsciana, a ideia é que o futuro governo mundial seja antecedido e preparado, consensualmente, por aquilo que Eduard Shevardnadze chamou de uma revolução global nos espíritos.
Com a pandemia de totalitarismo a que estamos assistindo em todo o mundo, a “nova civilização” acalentada pelos globalistas inicia a sua ascensão histórica
Ideias semelhantes foram expressas numa publicação recente do Fórum Econômico Mundial (FEM) intitulada Covid-19: The Great Reset, de Klaus Schwab e Thierry Malleret, cujo conteúdo é fortemente antissoberanista e, em larga medida, anticapitalista, com críticas voltadas especialmente aos EUA. “Crises existenciais [como a da Covid-19] também favorecem a introspecção, e podem suscitar o potencial para a transformação” – escrevem os autores. “As fissuras no mundo contemporâneo – mais notadamente, as divisões sociais, a carência de justiça social, a ausência de cooperação, o fracasso na liderança e na governança globais – foram expostas como nunca antes, e as pessoas sentem que chegou o tempo de se reinventar. Um novo mundo emergirá, cujos contornos são difíceis de imaginar e esboçar (...) O mundo que conhecíamos nos primeiros meses de 2020 desapareceu por completo, dissolvido no contexto da pandemia”.
Mais uma vez atestando a convergência entre comunismo e globalismo, o marxista esloveno Slavoj Žižek segue a mesma linha, apenas afirmando direta e contundentemente aquilo que, empregando a tradicional langue du bois diplomática, os globalistas do FEM apenas insinuam: que a Covid-19 oferece uma chance de refazer toda a ordem mundial em parâmetros socialistas, com o poder extremamente centralizado nas grandes organizações internacionais.
Em suma: ao fim da vida, “o camarada ordinário de Stavropol” (como Chernyaev chamava Gorbachev) parece mais perto de realizar o seu sonho – aliás, o mesmo do camarada Ulianov, e de companheiros de viagem como Rockefeller, Soros, Schwab e que tais. Com a pandemia de totalitarismo a que estamos assistindo em todo o mundo, a “nova civilização” acalentada pelos globalistas inicia a sua ascensão histórica. O recrudescimento do ataque às soberanias nacionais (representado, por exemplo, pela campanha internacional orquestrada contra líderes políticos soberanistas), o desprezo “iluminista” por valores culturais tradicionais tidos por “obscurantistas”, a coletivização de cada aspecto da existência humana, a supressão das liberdades individuais, a obliteração dos fundamentos religiosos de nossa civilização, o desenvolvimento – via terrorismo psicológico em ampla escala – de uma mentalidade global uniforme (o “consenso”, a “ciência”, o “bem comum”) e as reiteradas propostas de redação de uma Constituição mundial, tudo isso, enfim, aponta para um mundo pós-pandemia bem parecido com aquilo que os soviéticos projetaram ainda em fins dos anos 1950. Assim, é plausível especular que, nos anos vindouros, a humanidade sofra com novas cepas desse oportuno “problema global”, para o qual, utilizando as organizações internacionais como plataforma, e os monopolistas do Ocidente como aliados, os camaradas contemporâneos – com a China na vanguarda – pretendem vender a solução.
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