| Foto: Antonio Augusto/TSE
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“É até irônico que essas máquinas de votar, que supostamente deveriam resolver os problemas causados pelos sistemas eleitorais antiquados, estejam simplesmente tornando os problemas invisíveis para o eleitor.” (Penny M. Venetis, professora de Direito na Rutgers University)

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“Se você acredita que a tecnologia pode resolver seus problemas de segurança, então você não conhece nem os problemas e nem a tecnologia.” (Bruce Schneier, criptógrafo, moderador do Crypto-Gram Newsletter)

Em 2005, na Alemanha, cerca de 2 milhões de eleitores utilizaram urnas eletrônicas para votar. Quatro anos depois, o Tribunal Constitucional Federal considerou a eleição inconstitucional. O argumento foi que, tendo sido integralmente eletrônico, sem possibilidade de auditoria por qualquer meio físico independente, o processo violara o direito básico de garantia de publicidade. O juiz Andreas Vosskuhle anunciou a decisão do tribunal com estas palavras: “A eleição como fato público é o pressuposto básico para uma formação democrática e política. Ela assegura um processo eleitoral regular e compreensível, criando, com isso, um pré-requisito essencial para a confiança fundamentada do cidadão no procedimento correto do pleito. A forma estatal da democracia parlamentar, na qual o domínio do povo é midiatizado através de eleições, ou seja, não exercido de forma constante nem imediata, exige que haja um controle público especial no ato de transferência da responsabilidade do Estado aos parlamentares”.

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Em 2013, a Suprema Corte da Índia tornou obrigatória a impressão do voto, instruindo a autoridade eleitoral a adotar o sistema de votação eletrônica de “segunda geração”, conhecido como VVPAT (Voter Verifiable Paper Audit Trail, ou “documento de auditoria em papel verificável pelo eleitor”), que permite auditar a apuração eletrônica por meio de uma segunda via de registro do voto, gravado em meio distinto ao do equipamento de votação, e acessível à conferência do eleitor. No sistema VVPAT, quando um eleitor aperta o número de seu candidato na urna eletrônica, é impresso um boletim de papel contendo os dados do voto, que o eleitor pode conferir no ato. Segundo os juízes indianos, o sistema garantiria eleições mais livres e justas, evitando desconfianças.

“Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis.”

Editorial do The New York Times publicado em 2009.

Medidas similares de recusa de votação integralmente eletrônica foram tomadas em países como Holanda (pioneira na adoção da votação eletrônica, mas que se arrependeu em 2007), França, México, Irlanda, Bélgica, Paraguai, Peru e Rússia. Em todos esses, foram implementados mecanismos de verificação externa da votação eletrônica. A preocupação com a votação eletrônica era tão generalizada que, em 2009, o New York Times chegou a publicar um editorial afirmando taxativamente: “Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis (...) Na votação eletrônica sem impressão, os eleitores fazem sua escolha, e quando os votos são todos inseridos, a máquina computa os resultados. Não há meios de assegurar que uma pane ou truque intencional de um software malicioso ou de um hacker não possa ter alterado o resultado. Se houver uma eleição muito disputada, não há como fazer uma recontagem confiável”.

Enquanto tudo isso ocorre no planeta Terra, as autoridades eleitorais brasileiras, cuja soberba é diretamente proporcional à inépcia, andam tão cheias de si que encontram tempo para debochar de quem, a exemplo dos magistrados alemães e indianos, bem como do editorialista do NYT, exige uma medida óbvia de transparência e confiabilidade: que o sistema eletrônico seja passível de auditoria por meio não eletrônico. Foi o que fez, por exemplo, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR), ao postar no TikTok um vídeo irônico, no qual os proponentes do voto impresso são representados como portadores de uma mentalidade “medieval”. Exibindo uma jovem enrolada num lençol, emulando o que os idealizadores da peça imaginam ser um traje típico da Idade Média, e tendo ao fundo um majestoso castelo, o vídeo é acompanhado do texto: “Quando a pessoa fala de voto impresso em pleno século 21”. Depois da gracinha, segue a informação pretensamente séria, mas que, de fato, parece ser a verdadeira piada: “A urna eletrônica é 100% segura”.

Antes de tudo, convém notar o provincianismo temporal dos autores da patacoada, que reproduzem feito papagaios o fetiche progressista segundo o qual a passagem do tempo é sinal inequívoco de aprimoramento. Dizem “em pleno século 21” sem corar, como se o referido século, coincidentemente o seu próprio, tivesse algo de muito especial. Tampouco demonstram sinal algum de vergonha ao repetir o clichê surrado que trata “medieval” como sinônimo de “atrasado”, e que é a marca inconteste do ignorante. Como escreve o filósofo Eric Voegelin em A Crise e o Apocalipse do Homem, oitavo volume de sua História das Ideias Políticas: “Ao fim do século 19, a alegada escuridão da Idade Média tornara-se o sintoma pelo qual o semieducado podia ser diagnosticado; e, se qualquer pessoa iluminada quisesse fazer piada sobre a escolástica, a piada voltava-se contra essa mesma pessoa”. Ora, não é preciso ser nenhum medievalófilo para reconhecer que na Idade Média tínhamos Agostinho e A Cidade de Deus, Aquino e a Suma Teológica, Dante e a Divina Comédia, a Catedral de Chartres, a ética cavalheiresca, o canto gregoriano, as universidades etc. E, sobretudo, que não tínhamos magistrados com idade mental inferior a 12 anos mandando postar vídeos engraçadinhos no TikTok.

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Mas aceitemos por ora, a título de experiência mental, a lógica reducionista do “avanço” versus “atraso” veiculada pelo material de propaganda do TRE-PR. Nesse caso, o papel ridículo desempenhado pelo tribunal fica mais evidente. Afinal, os idealizadores do vídeo foram cantar de galo logo com as urnas brasileiras, verdadeiras jabuticabas tecnológicas, as mais atrasadas dentre as urnas eletrônicas existentes no mundo, e que, fora do Brasil, já foram abolidas por todos os países que um dia as adotaram. Estufar o peito e posar de avançado por causa desse cacareco é o mesmo que, nos dias de hoje, exibir-se orgulhosamente aos vizinhos por ter adquirido um videocassete de quatro cabeças.

As urnas eletrônicas utilizadas no Brasil são ainda da primeira geração de equipamentos eletrônicos de votação (EEVs), surgidos nos anos 90 do século passado. Nesses microcomputadores, o voto é exibido na tela para a confirmação do eleitor, sendo em seguida gravado diretamente em algum arquivo na memória digital. Encerrada a votação, a máquina apura eletronicamente os votos e transmite o resultado digitalmente para a central de totalização.

Na literatura técnica internacional, esse tipo de EEV é conhecido pela sigla DRE – direct recording electronic voting machine (“maquina de gravação eletrônica direta do voto”). Pelo fato de que, nesse sistema, a segurança do resultado publicado depende integralmente da confiabilidade do software instalado na urna – que não pode ser auditada pelo público geral, mas apenas por técnicos altamente especializados –, a partir de meados dos anos 2000, como dissemos, as DREs começaram a ser abandonadas por países como Holanda, Alemanha, EUA, Canadá, Rússia, Bélgica, Argentina, México, Paraguai, Índia e Equador, que passaram a usar EEVs de segunda ou terceira geração, respectivamente VVPAT (já mencionado para o caso da Índia) e E2E (end-to-end verifiability, um sistema com escaneamento). Hoje, o Brasil é o único país do mundo que continua usando o EEV de primeira geração. Em pleno século 21!

Estufar o peito e posar de avançado por causa de urnas eletrônicas que são da primeira geração de equipamentos eletrônicos de votação é o mesmo que exibir-se orgulhosamente aos vizinhos por ter adquirido um videocassete de quatro cabeças

Também o iluminista Luís Roberto Barroso, presidente do TSE e personagem recorrente desta coluna, achou por bem esclarecer com as luzes da razão as mentalidades obscurantistas e medievais que – notem bem! – ainda desconfiam do nosso sistema. Em vídeo-propaganda publicado no canal do tribunal no You Tube (que ora conta com 22 mil dislikes contra 2,4 mil likes), Barroso abusa das caras, bocas e slogans para afirmar que “o Brasil tem, provavelmente, o melhor sistema de apuração eleitoral do mundo”. O ministro exalta a agilidade com que os votos são apurados, garantindo também que, ao longo dos 25 anos em que o sistema foi adotado, “jamais ocorreu qualquer caso de fraude comprovada”. Diz ainda que o sistema é plenamente auditável e que – atenção! – “qualquer pessoa pode conferir tudo o que foi feito”. E descreve nove supostas auditorias por que passa o nosso processo eleitoral.

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Barroso diz que jamais ocorreu qualquer caso de fraude comprovada em 25 anos de adoção do atual sistema eleitoral brasileiro. Mas, em vez de tranquilizadora, essa declaração só faz aumentar a desconfiança no sistema. Porque, sendo difícil imaginar não ter havido nenhuma tentativa de fraude em todo esse tempo, resta a hipótese de que, sim, as houve, mas o TSE foi incapaz de identificá-las. Por outro lado, a afirmação de que qualquer pessoa pode auditar o processo eleitoral é simplesmente falsa. O sistema é estruturado de forma tal que só engenheiros de sistema, técnicos de segurança da informação e programadores podem ter alguma esperança de acessá-lo.

Como sugerem especialistas em segurança da informação como os professores Pedro Dourado Resende, da UnB, e Diego Aranha, da Unicamp, as nove auditorias mencionadas por Barroso não auditam realmente as fases de um processo eleitoral concreto de um ano determinado, mas apenas protótipos da urna e do software utilizados. Ademais, todas dependem de uma confiança irrestrita na autoridade eleitoral, e só funcionam com base no pressuposto de que não há agentes internos participando de eventuais fraudes e manipulações eleitorais, ou seja, de que os tribunais eleitorais são, eles próprios, ambientes plenamente seguros (tese que já se provou furada).

Ora, o primeiro objeto de uma auditoria eleitoral deveriam ser justamente os responsáveis pelo processo, no caso o TSE e os TREs. São eles que, como sugere o velho adágio romano (quis custodiet ipsos custodes?), precisariam ser auditados de maneira independente. Em vez disso, contudo, são eles próprios que auditam e fornecem as garantias – a confecção e operação do software, sua assinatura, lacre e depósito em cofre – de todo o sistema. Em outras palavras: no Brasil, só é possível auditar o processo eleitoral por meio das ferramentas e protocolos fornecidos justo por quem deveria ser auditado em primeiro lugar.

Em 2014, recorde-se, tivemos uma eleição presidencial envolta em obscuridade e suspeitas de fraude. Entre as 17 e as 20 horas do dia da votação decisiva, o então presidente do TSE, ministro Dias Toffoli (recém-delatado por Sérgio Cabral como tendo vendido sentenças favoráveis a políticos), trancou-se numa sala com apenas 22 técnicos do tribunal para sair lá de dentro com o resultado: uma súbita virada de Dilma Rousseff, candidata do partido que lançou Toffoli na vida pública. É o que chamei à época de “milagre de Toffoli”, a multiplicação sobrenatural de votos para a candidata petista.

Em face das denúncias de fraude feitas por eleitores de todo o país, o PSDB, partido derrotado, solicitou ao TSE uma auditoria do processo eleitoral. A auditoria foi realizada por uma equipe independente de analistas e peritos, e seu relatório, publicado no fim do ano seguinte. Na internet, o documento está disponível na íntegra e em versão resumida.

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Na época da divulgação, a parcela mais filopetista da imprensa noticiou, de forma mentirosa, que a auditoria não detectara fraudes na eleição de 2014. Reproduzindo sem checar uma informação falsa de Dias Toffoli, por exemplo, a IstoÉ cravou a fake news: “Auditoria do PSDB não encontrou fraude na eleição de 2014”.

No Brasil, só é possível auditar o processo eleitoral por meio das ferramentas e protocolos fornecidos justo por quem deveria ser auditado em primeiro lugar

Mas o relatório não dizia nada disso. Pelo contrário, suas conclusões principais foram de que 1. o sistema eleitoral brasileiro não permitia auditoria independente efetiva do resultado produzido; e 2. a etapa de votação e apuração dos votos feitos nas urnas eletrônicas não podia ter sua confiabilidade garantida devido às severas restrições impostas pela autoridade eleitoral. Seguem alguns trechos do documento:

“Hoje, como está claro para todas as partes envolvidas com a auditoria, os procedimentos de perícia previstos em leis e regulamentos da Justiça Eleitoral são insuficientes para garantia da transparência do processo de eleições, necessitando não só de um aperfeiçoamento de métodos como, também, de uma mudança de concepção por parte de todos aqueles que participam diretamente do processo eleitoral... O certo é que o Tribunal se afastou das melhores práticas e normas mundiais de auditoria sob a concepção de que exames independentes e profundos colocariam em risco a segurança do sistema eleitoral, afastando-se da consagrada prática de que a transparência aumenta a segurança e reduz riscos... Ao impedir parte relevante dos procedimentos de auditoria e ao deixar de responder os questionamentos apresentados, a infraestrutura do TSE demonstrou inadimplemento quanto ao seu próprio Planejamento Estratégico, portanto à sua missão, visão e valores, além de violar as regras de governança em prejuízo da transparência e da credibilidade do sistema eleitoral brasileiro... Em vez de encontrar as portas abertas ao apoiar o TSE na consecução do seu Planejamento Estratégico, no que se refere à apuração transparente para o eleitor, a Auditoria Especial foi fortemente limitada em suas ações e impelida de fato a se afastar da sua missão de conduzir verificação técnica profunda sobre credibilidade, transparência, segurança e alinhamento entre discurso e prática no sistema eletrônico eleitoral... Essa postura de ofuscação e limitação imposta judicialmente ou administrativamente pelo Tribunal às auditorias se baseia em pareceres técnicos, requerimentos e pedidos que partem das próprias áreas técnicas que precisam ser alvo de auditoria para apurar as denúncias, tendo como resultado efetivo criar um manto de ‘inauditabilidade’ incompatível com as determinações do Poder Judiciário e com a Administração Pública sobre transparência dos atos e apuração das denúncias... A Auditoria Especial foi impedida de acessar livremente e realizar os exames periciais adequados para avaliar esse sistema, configurando, portanto, descumprimento dos órgãos técnicos do TSE quanto ao requisito de transparência”.

No resto do mundo, os princípios mais valorizados no que diz respeito ao processo eleitoral são o da transparência e o da segurança. No Brasil, ao contrário, é o da velocidade

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Transparência e publicidade não parecem ser mesmo o forte de nossas autoridades eleitorais, que preferem rosnar ou fazer piadas em face de críticas e questionamentos. Quando presidiu o TSE de fevereiro a agosto de 2018, por exemplo, o ministro Luiz Fux chegou a dizer que, por ser ligada apenas na tomada, a urna brasileira era tão segura quanto uma torradeira elétrica. Fux só se esqueceu que, dependendo do uso, uma torradeira pode não ser assim tão segura quanto parece.

No resto do mundo, como ficou claro na decisão do tribunal constitucional alemão, os princípios mais valorizados no que diz respeito ao processo eleitoral são o da transparência e o da segurança. No Brasil, ao contrário, é o da velocidade. Nossas autoridades eleitorais gabam-se sempre, antes de qualquer coisa, da suposta rapidez com que os votos são apurados no país. Todavia, não parecem ligar muito para a exigência de publicidade ampla do processo de apuração. Antes que pela transparência, o sistema brasileiro caracteriza-se pela obscuridade, pelo elitismo e pela concentração de poder nas mãos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, ademais de definir normas técnicas, desenvolver os EEVs e operá-los para a coleta e a totalização dos votos, também acumula as funções de comandar as eventuais auditorias, mesmo sendo ele próprio o objeto da investigação.

Em suma, o TSE está no comando não apenas do desenvolvimento e execução do sistema eletrônico de votação, como também das investigações e do julgamento sobre eventuais problemas ocorridos durante o processo eleitoral. O tribunal investiga e julga a si próprio. Quem, em sã consciência, pode realmente acreditar nesse tipo de auditoria? A exemplo do STF – cujo inquérito das fake news, por violar o sistema acusatório e reservar ao tribunal os papéis simultâneos de vítima, investigador, promotor e juiz, foi batizado por um de seus próprios integrantes de “inquérito do fim do mundo” –, tudo o que o TSE pode entregar ao país é uma “eleição do fim do mundo”. Como se pode prever, 2022 não será para os fracos!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]