Ouça este conteúdo
“Guerra! Guerra! Guerra! Vai ser uma guerra legal” (Krieg, Krieg, Krieg! Es wird ein schoener Krieg) – cantavam os jovens oficiais nas ruas de Viena quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial. E o que veio, como se sabe, não foi nada legal: 20 milhões de mortos, na guerra mais destrutiva e sanguinária até então. Aliás, é provável que nenhum daqueles jovens outrora entusiasmados tenha sobrevivido para voltar a emitir sua opinião sobre o tema.
Em A Sagração da Primavera, o historiador Modris Eksteins nota como a sensibilidade estética do século 20 esteve marcada desde o início pelo elogio do paganismo e dos sacrifícios rituais primitivos. Na interpretação do autor, a Grande Guerra (como era chamada antes da Segunda Guerra Mundial) foi um conflito essencialmente sacrificial, como se o espírito da época ansiasse por um morticínio redentor. O título de Eksteins vem do balé homônimo A Sagração da Primavera (Le Sacre du Printemps), interpretado como um símbolo condensado do Zeitgeist que se iniciava com o século. Com música de Igor Stravinsky, coreografia de Vaslav Ninjinsky e direção de Serge Diaghilev, o balé foi apresentado pela primeira vez no Théâtre des Champs-Élysées, em Paris, em 1913, um ano antes do início da guerra, causando grande alvoroço e escândalo. O balé evocava ritos de fertilidade da Rússia pagã, e o tema central girava em torno da imolação ritual de uma jovem inocente, oferecida em sacrifício a um deus pagão da primavera. Através da morte, a natureza renascia e se revigorava. Essa, provavelmente, foi também a crença dos jovens oficiais austríacos.
Antes que democracia, o que os políticos e democratas postiços produziram foi o oposto: um Estado policial que censura, atropela as leis, faz prisões políticas e recorre a jagunços para impor a vontade dos donos do poder
Censura! Censura! Censura! Vai ser uma censura legal – pareceu gritar boa parte dos nossos jornalistas e formadores de opinião quando da eclosão do regime de exceção ora vigente no Brasil, cujo episódio mais recente foi o banimento do X por ordem de Alexandre de Moraes, que assim, com uma canetada, censura 20 milhões de brasileiros e coloca o país ao lado de regimes fechados como China, Rússia, Venezuela e Coreia do Norte. Muitos jornalistas brasileiros acreditaram que seria um estado de exceção apenas temporário, mirando alvos bem definidos (os “bolsonaristas”), e tudo fizeram para retratar o ditador como uma “muralha” da democracia contra perigosos agressores.
Quem não se lembra de uma conhecida jornalista descrevendo o evento de assinatura da “Carta pela Democracia” – a charlatanice pró-Lula ocorrida nas “arcadas uspianas”, templo do tucanopetismo que comanda a Nova República – como uma “oração nacional pela democracia”? Ora, se houve ali alguma “oração”, decerto foi daquelas recitadas de trás para frente e diante de um crucifixo de ponta-cabeça, como nas missas negras. Endereçava-se não às alturas do Paraíso, mas aos baixios do próprio umbigo.
Não, antes que oração, o que os signatários da “Carta pela Democracia” e o fã-clube de Alexandre de Moraes declamaram coletivamente naquele dia soou mais como alguma variante de quebranto, esconjuro ou feitiço. Dos chumaços de algodão, feixes de palha ou amontoados de penas que manipularam diante das respectivas audiências seletas, os feiticeiros retóricos retiraram um boneco vodu em formato de “povo”, fetiche que imediatamente adoraram, e que, adorando-o, adoraram mais ainda a si próprios. “Le peuple, c’est moi”, bradou a aristocracia neorrepublicana tupiniquim. “E quem reclamar eu prendo e arrebento”, arrematou o seu xerife.
“Sempre presuma macumba!” – diriam os Brasileirinhos. Com efeito, antes que democracia, o que os políticos e democratas postiços da elite uspiana produziram ali foi o exato oposto: um Estado policial que censura, atropela as leis, faz prisões políticas e recorre a jagunços para impor a vontade dos donos do poder. Imagino que ao menos alguns daqueles infelizes signatários hoje choraminguem baixinho no travesseiro: “Mas o que é que eu fui fazer? O que é que eu fui fazer?”. Agora Inês é morta. E a liberdade de expressão também.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos