Ouça este conteúdo
“Saí do museu, essa catedral da desverdade, com um estranho nó no estômago.” (Theodore Dalrymple, Viagens aos Confins do Comunismo)
Não sei bem por que me lembrei de A Pensão Tellier, de Guy de Maupassant. No célebre conto, um grupo de seis prostitutas residentes no bordel de Madame Tellier, venerável camponesa normanda, viaja a um vilarejo interiorano para assistir à primeira comunhão de uma sobrinha e afilhada da cortesã, causando transtorno aos frequentadores do local. Uma vez na igreja, as profissionais do sexo são tomadas por uma arrebatadora – e sincera – comoção religiosa, que as leva às lágrimas. Horas depois, entre risinhos e meneios de corpo, já se as vê, todavia, retornarem alegremente ao lupanário a fim de retomar suas costumeiras atividades noturnas. E a comoção, agora, era a dos clientes.
Ignoro, repito, o motivo dessa lembrança. Mas não o que me fez reler Viagens aos Confins do Comunismo, livro em que o psiquiatra inglês Theodore Dalrymple relata a sua experiência de visitar países que, em 1989, quando o comunismo parecia ruir em sua pátria-mãe, insistiam em manter respirando por aparelhos o regime político (supostamente) terminal. Buscava ali a aguda descrição, de que me recordava bem, daquele sentimento histérico de reverência que as populações dos países sujeitos à experiência comunista demonstravam diante da figura e dos emblemas dos Grandes Líderes, os quais, a exemplo do sacramento no conto de Maupassant, por vezes arrancavam lágrimas (entre sinceras e aterrorizadas) de seus súditos em êxtase.
Seja na Albânia, na Coreia do Norte ou em Cuba, uma mesma característica do comunismo sobressai sobre a heterogeneidade étnico-cultural: a mentira compulsória
“Minhas visitas foram breves, e por isso minha experiência de cada país, por mais intensa que tenha sido, foi necessariamente limitada; porém, como os países tinham culturas muito diversas, os efeitos comuns produzidos pelo comunismo ficavam ressaltados ainda mais claramente” – escreve Dalrymple, destacando a notável capacidade do comunismo de, borrando fronteiras e particularidades nacionais, produzir em toda parte o mesmo tipo de situação social. Daí que, quer seja na Albânia, na Coreia do Norte ou em Cuba, uma mesma característica sobressai sobre a heterogeneidade étnico-cultural: a mentira compulsória. Nas palavras do autor:
“Tirando os massacres, as mortes e as fomes pelas quais o comunismo foi responsável, a pior coisa do sistema era a mentira oficial, isto é, a mentira de que todos eram obrigados a participar, por repetição, por consentimento ou por não contradizê-la. Cheguei à conclusão de que o objetivo da propaganda nos países comunistas não era persuadir, e muito menos informar, mas humilhar e emascular. Nesse sentido, quanto menos ela fosse verdadeira, quanto menos correspondesse à realidade, melhor; quanto mais contradissesse a experiência das pessoas às quais se dirigia, mais dóceis e mais impotentes elas ficavam, desprezando-se mais e mais por não protestar.”
Sobre a Albânia, por exemplo, Dalrymple relata o desagradável sentimento da onipresença do ditador Enver Hoxha, líder do Partido Trabalhista, e que governou o país por mais de quatro décadas. O hotel em que o psiquiatra se hospedou em Tirana, capital da Albânia, ficava localizado em frente à Praça Skanderberg, nome de um herói nacional albanês. Todavia, a enorme estátua erguida no centro da praça não é de Skanderberg, mas de Hoxha, “um tiozão roliço e metálico com seu pesado sobretudo de bronze”. Percorrendo o Boulevard dos Mártires, que começa na praça, chega-se ao prédio da Universidade Enver Hoxha, à esquerda do qual fica o estádio de futebol Enver Hoxha.
No mesmo boulevard, fica também o Museu Enver Hoxha, que abriga a Biblioteca Enver Hoxha, cujo acervo é quase todo composto por encadernações variadas dos 60 volumes das Obras Completas de Enver Hoxha. “Essa é a catedral metropolitana da nova religião albanesa” – diz Dalrymple sobre o museu. “Da entrada saem dois tapetes vermelhos (nos quais não se deve pisar), que vão até uma estátua branca, grande e estonteante, de Hoxha, sentado faraonicamente no que, suspeita-se, é uma poltrona. A estátua tem gladiadores vermelhos na base e está situada exatamente no centro de uma extensão de pedra branca. Minha vontade era de rir”.
Assim era na Albânia. Mas, repito, poderia ser na Coreia do Norte, na Romênia, no Vietnã, em Cuba... Poderia ser – quiçá? – no Brasil de 2022. Com efeito, lembrei dos relatos de Dalrymple ao topar com a notícia de que, nesta quarta-feira (dia 9), a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados aprovou uma premiação ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, supostamente por seu papel de “guardião da democracia brasileira”. E também com a notícia de que, graças a esse papel, um deputado petista propôs que se ergam bustos de Moraes nas praças públicas do Brasil. Tal como Dalrymple, minha vontade também foi de rir. Mas de nervoso...
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos