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Detalhe de retrato de Voltaire pintado por
Nicolas de Largillière.
Detalhe de retrato de Voltaire pintado por Nicolas de Largillière.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“Que eu exponha aos seus olhos o perigoso quadro
Das mentiras sagradas que enchem a terra,
E que, finalmente, a filosofia
Lhe ensine a desprezar os horrores do túmulo
E os terrores da outra vida.”
(Voltaire, Epístola a Urânio, 1733)

No último dia 22, o cientista político Fernando Schüler publicou em sua coluna na Veja, sob o título “As lições de Voltaire”, uma corajosa e veemente denúncia contra o estado de exceção ora vigente no Brasil, iniciativa que, por si só, atrai riscos pessoais imediatos para quem se lhe arrisque a empreender. Mas, além de desafiar os próceres do regime, que hoje praticam livremente, sem freios e contrapesos, o assédio judicial e o abuso de autoridade politicamente motivados, Schüler também expôs a pusilanimidade da maior parte de seus colegas da outrora chamada “grande imprensa”.

Sem meias palavras, o articulista pôs o holofote sobre aqueles que, seja por conveniências político-ideológicas, por acordos pecuniários ou ainda por covardia pessoal pura e simples, agem para blindar o regime, não falando e não deixando falar sobre o elefante na sala: as gritantes injustiças cometidas contra os presos políticos do 8 de janeiro. E é justamente com um dos casos mais aberrantes relativos ao episódio – a prisão kafkiana de Filipe Martins, ex-assessor de relações internacionais do governo de Jair Bolsonaro – que o colunista abre o seu impertinente artigo, depois de rejeitar o conselho melífluo de uma colega de pouca virtude, segundo quem as prisões políticas e a censura contra a direita brasileira deveriam ser “varridas para baixo do tapete”.

Além da prisão de Filipe, Schüler menciona outros exemplares da coleção de absurdos jurídicos que, graças a praticantes de antijornalismo como aquela sua colega de “jeito querido”, foram naturalizados no Brasil de nossos dias. Como o caso de Debora Rodrigues dos Santos, cabelereira de São Caetano e jovem mãe de duas crianças de 6 e 9 anos, presa desde março de 2023 apenas por ter pichado com batom a frase “perdeu, mané” numa estátua localizada em frente ao STF. De acordo com a versão obrigatória proclamada pela suprema magistratura, encaminhada por WhatsApp aos porta-vozes do regime e por eles reproduzida ao vivo nos telejornais oficiais, a perigosa bolsonarista tentou dar um golpe de Estado ou, segundo o juridiquês corrente, “abolir violentamente o Estado de Direito”. Daí que, de modo a saciar o voraz apetite justiceiro dos “deuses da democracia”, a moça mereça ser sacrificada e apodrecer na cadeia, bem longe dos filhos, o menorzinho dos quais passou o último Natal choramingando pelos cantos.

“E o Natal se foi. Perdeu, manezinho. A frase nua e crua que faltou alguém escrever naquela estátua” – comenta Schüler com precisão e sensibilidade. “Dói um pouco mergulhar nessas histórias. Mas é necessário. É o jeito de entender o que se passa no país, um pouco abaixo da pele retórica das redes, do bate-boca político. Reconheço que há uma impertinência nisso” – prossegue o autor, encaminhando-se para concluir uma coluna de opinião de importância histórica, a qual, por pouco, não se encerra de maneira perfeita.

O erro fundamental de Schüler – de algum modo até extemporâneo – é o de levar Voltaire a sério em matéria de denúncia contra eventuais abusos de poder da Igreja na França setecentista

O que lhe tisnou a perfeição foi, contudo, a importância demasiada concedida a um personagem da história intelectual do Ocidente que, apesar da fama, não me parece representar à altura o combate intelectual contra o abuso de poder. Discordando a esse respeito do colunista, que o julgou tão decisivo a ponto de inseri-lo no título da coluna, foi-me decepcionante topar com Voltaire na posição de modelo para a defesa impertinente da justiça, sobretudo porque o pensador francês é puxado para dentro do texto pelo membro menos sadio e menos confiável de seu corpus litterarum: a polêmica anticlerical. Eis o que escreve Schüler:

“O gosto pela impertinência vem da história. Voltaire talvez tenha sido o grande mestre, e suas histórias sempre me cativaram. Uma delas é a de Jean Calas, o comerciante de Toulouse queimado na fogueira em 1762, acusado de matar o filho por motivos de religião. Voltaire agarrou aquele caso com as unhas. Escreveu, apelou a Paris, aos tribunais, ao rei. E virou o jogo. A outra história é ainda mais reveladora. Sua defesa do jovem Jean-François de La Barre, acusado de profanar um crucifixo e debochar da religião. La Barre era um tipo iconoclasta, e se recusou a tirar o chapéu numa procissão, e isso era coisa pesada à época. Possivelmente bem mais do que pintar uma estátua com batom, em Brasília. La Barre terminou na fogueira, como Calas. Foi o último francês queimado por blasfêmia. Voltaire mergulhou naquela história, quis saber da culpa, das provas, do trabalho dos juízes. E novamente virou o jogo. Note-se que ele nem sequer conhecia La Barre ou Calas. Sabia apenas que aquilo não era justo, que os juízes eram enviesados, que o devido processo tinha sido atropelado e a excitação religiosa havia ‘tomado o lugar da prova. E que aquilo ofendia não apenas a memória daqueles dois franceses manés, mas a todos os franceses, que viviam sob as mesmas leis. Mais do que isso, ofendia a própria ideia de justiça. E que por isso era preciso ser intransigente.”

O erro fundamental aí – de algum modo até extemporâneo – é o de levar Voltaire a sério em matéria de denúncia contra eventuais abusos de poder da Igreja na França setecentista. Não que inexistissem abusos, obviamente, mas não será jamais em Voltaire, com o seu radical anticlericalismo, que o interessado no assunto haverá de encontrar um relato fidedigno sobre tal ou qual caso concreto. Pretendendo derrubar sozinho, em suas próprias palavras, aquilo que Jesus precisara de 12 homens para erguer, Voltaire acabou fracassando solenemente e, dos seus panfletos anticlericais, quase nada restou de legado cultural digno de nota. Como, em sua História da Literatura Ocidental, Otto Maria Carpeaux concluiu inapelavelmente, afora a herança do refinado estilo satírico e o interesse histórico do Essai sur les Moeurs, “para nós, hoje, a sua obra em conjunto já não existe (...) O antipascaliano Voltaire morreu para sempre”.

Obviamente, Schüler não foi o primeiro, nem terá sido o último, a ser “cativado” pelas histórias de Voltaire, um mestre na arte de ludibriar e, à guisa de divertissment, empregar o seu talento literário para comover o público a acreditar nas fábulas as mais inverossímeis. É que o castelão de Ferney partilhava com Diderot e demais philosophes o gosto pelo escândalo e pela mistificação deliberada em suas diatribes anticlericais, nas quais importava muito mais o efeito retórico espetaculoso do que a fidelidade aos fatos. Na verdade, quanto mais irrealistas fossem as histórias, tanto melhor, uma vez que, para os intelectuais de salão, tudo não passava de uma espécie de competição esportiva, vencida por quem, mediante o dom da palavra, conseguisse convencer o público leitor a tomar por verdade o que não passava de farsa. Nos salões literários e nas lojas maçônicas, bem como nas trocas de cartas, rendiam boas risadas esses duelos entre exímios esgrimistas do verbo.

Foi Diderot quem, com o seu romance A Religiosa, consagrou definitivamente o gênero, muito apreciado, inclusive, na corte de Luís XV. Publicado postumamente em 1796, mas já conhecido dos leitores da Correspondência Literária de Grimm desde ao menos 1780, quando saiu em formato de folhetim, o livro de Diderot, cuja trama exerceu forte impacto sobre a imaginação revolucionária, narra a história (supostamente verídica) de Suzanne Simonin, uma pobre moça mantida no convento contra a sua vontade. As palavras conclusivas de uma resenha da época, publicada no periódico L’Esprit des Journaux Français et Étrangers, dão uma boa ideia sobre a repercussão da obra:

“Essa obra singular e cativante permanecerá como um monumento do que eram outrora os conventos, flagelo nascido da ignorância e do fanatismo em delírio, contra o qual os filósofos protestaram por tanto tempo e em vão, e do qual a Revolução Francesa libertará a Europa dentro de poucos anos, se a Europa não insistir em dar passos retrógrados rumo à barbárie e ao embrutecimento.”

Com efeito, A Religiosa é um espécime prototípico da cultura intelectual responsável pela natureza particular da Revolução Francesa, bem observada por Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução: “Dentre as paixões que nasceram daquela Revolução, a primeira a se acender, e última a se extinguir, foi a paixão irreligiosa”. Como também demonstra o historiador Jean Dumont em La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège, a fúria revolucionária voltou-se inicialmente não contra a nobreza e a monarquia, mas contra o clero:

“A primeira manifestação de violência revolucionária foi reservada à Igreja. No início do verão de 1789, essa violência não havia em absoluto visado ao rei ou aos aristocratas, mas, desde os dias 24 e 25 de junho, ao bispo de Beauvais, deixado num estado semi-inconsciente, e ao arcebispo de Paris, o qual, apedrejado, escapou com vida graças à agilidade dos cavalos de sua carruagem (...) Megeras e trabalhadores braçais, após forçarem a entrada dos conventos, lançaram-se sobre as religiosas, agredindo-as e flagelando-as até arrancar-lhes sangue, e durante horas a fio. Assim foram tratadas as Visitandinas, as Recoletas, as Filhas do Precioso Sangue, as Filhas do Calvário, as Filhas da Santa Genoveva, e as Filhas da Caridade.”

Tendo frutificado na Revolução, A Religiosa fora desde o início concebida como um panfleto anticlerical. Ao criar a protagonista e apelar para o dramalhão, descrevendo o monastério como uma prisão dos horrores, Diderot mentia de modo deliberado. Sabia ele que, na época em que a obra começou a ser redigida, por volta de 1760, uma jovem dificilmente seria mantida contra a vontade num convento francês, uma vez que os critérios para a seleção de freiras costumavam ser muito rigorosos. E sabia também que os tribunais eclesiásticos responsáveis por lidar com pedidos de dispensa costumavam atender a todos.

Desde os anos 1740, todavia, o ex-noviço Diderot vinha preparando o bote antimonástico, lapidando a sua fantasmagoria da vida conventual. Como diz no sétimo de seus Pensamentos Filosóficos:

“Que vozes! Que gritos! Que gemidos! Quem encerrou nestas masmorras todos estes cadáveres plangentes? Que crimes cometeram todos estes desgraçados? Uns batem no peito com calhaus; outros dilaceram o corpo com unhas de ferro; todos eles têm o remorso, a dor e a morte nos olhos. Quem os condena a estes tormentos?

– O Deus que ofenderam. – Que Deus vem a ser esse?

– Um Deus cheio de bondade. – Um Deus cheio de bondade encontraria prazer em banhar-se nas lágrimas? Os terrores não seriam uma injúria à sua clemência? Que mais fariam criminosos encarregados de acalmar os furores de um tirano?”

Voltaire partilhava com Diderot e demais philosophes o gosto pelo escândalo e pela mistificação deliberada em suas diatribes anticlericais, nas quais importava muito mais o efeito retórico espetaculoso do que a fidelidade aos fatos

Essa é a primeira sequência do filme de terror que, a partir dali, Diderot não cessaria de projetar na imaginação de seus leitores cativos, em cujos corações procurava minar não apenas a ideia de vocação monástica autêntica, mas também a fé católica em sua totalidade. Mas se, dirigindo-se ao público geral, o philosophe carregava nas tintas melodramáticas e parecia sofrer sinceramente pelo destino dos enclausurados, divertia-lhe, por outra, a broma compartilhada com os pares intelectuais.

Como disse acima, é claro que Schüler não foi o primeiro a ser enganado pela malícia anticlerical dos philosophes. O primeiro talvez tenha sido Marc-Antoine-Nicolas, o Marquês de Croismare, um amigo pessoal de Diderot, o qual, junto com o parceiro Friedrich Melchior Grimm, fez dele vítima de uma brincadeira de gosto duvidoso, jocosamente apelidada pelos algozes de “o horrível complô”. Eis aí a gênese do romance A Religiosa.

De 1755 a 1758, um caso judicial foi muito comentado em Paris. Tratava-se do processo de uma senhorita de nome Marguerite Delamarre, freira do mosteiro de Longchamp, a qual, alegando ter sido coagida por sua família a professar seus votos monásticos, pretendia anulá-los. Apesar de tudo ignorar sobre o caso, mas profundamente comovido pela boataria que o havia cercado, o Marquês de Croismare dispôs-se a ajudar a pobre moça, intercedendo em seu favor junto aos conselheiros do Parlamento de Paris. No entanto, tendo sido vãos os seus esforços, e tendo Mademoiselle Delamarre perdido o processo, a volúvel sociedade parisiense de então logo se esqueceu do ocorrido.

Considerado “um dos homens mais amáveis” da França, amante da música, da pintura e da fina gastronomia, o Marquês de Croismare era frequentador assíduo dos grandes salões literários de Paris, em especial o de Madame d’Épinay, no qual conheceu Diderot, Grimm e outros intelectuais da época, que o apelidaram de “marquês charmoso” (charmant marquis) e – um tanto por troça – de “filósofo”. Ocorre que, mais ou menos na mesma época em que Mlle. Delamarre perdia o seu processo, e para grande tristeza dos amigos, o “marquês charmoso” resolvia deixar Paris e voltar ao seu castelo em Lasson, nas redondezas de Caen (Normandia).

A fim de aliviar a saudade e entreter o saudoso amigo, Diderot e Grimm tiveram a ideia de lhe enviar cartas forjadas, supostamente redigidas pela freira Delamarre, nas quais, depois de contar como havia conseguido fugir do convento, ela lhe pedia ajuda e proteção. Grimm fala do episódio em sua correspondência literária: “Passamos então o jantar lendo, em meio a gargalhadas, as cartas [de Diderot] que fariam chorar o bom marquês; e lemos ali, com as mesmas gargalhadas, as respostas honestas que esse bom e generoso amigo se prestou a dar”.

Resta que, digno como era, e mais resistente contra a leviandade intrínseca à cultura dos salões, Croismare não ficou só nas palavras. Verdadeiramente disposto a proteger a moça, convidou-a a se abrigar no seu castelo em Lasson. Em vista do convite, obviamente, a personagem fictícia da freira fugitiva teve de ser condenada à morte por seus criadores. Mas Diderot gostara tanto da brincadeira que, no verão de 1760, escreveu a Madame d’Épinay: “Comecei a trabalhar em A Religiosa... Isto não é mais uma carta, é um livro”.

A brincadeira confirma não haver nada de trágico no caso real de Marguerite Delamarre. Afinal, na qualidade de anticlerical sincero, é difícil crer que Diderot se divertisse com o infortúnio de uma freira, caso esse infortúnio fosse real. Assim é que, de posse dos arquivos sobre um processo banal, o philosophe manipulou-o como quis. À luz de sua fantasmagoria conventual, Diderot deu asas à imaginação, acrescendo ao caso os eventos mais extravagantes, e fazendo da abadia de Longchamp uma prisão abominável e um centro de tortura.

Durante muito tempo, a versão de Diderot restou plenamente aceita, uma vez que a documentação completa do caso desaparecera pouco tempo depois da publicação do romance. O dossiê do caso Delamarre só veio a ser reencontrado em 1954 pelo historiador e crítico literário Georges May, que o esmiuçou e reapresentou em Diderot et “La Religieuse”: Étude Historique et Littéraire. Não obstante a simpatia do autor para com Diderot, seu livro revela a exata dimensão do festival de distorções factuais produzidas pelo enciclopedista.

Em primeiro lugar, Marguerite Delamarre só requereu a saída do convento após 17 anos de vida monástica, enquanto que, no romance, a personagem Suzanne Simonin não suporta mais que um ano de clausura. Em segundo lugar, o processo de Delamarre não foi movido contra o convento, mas contra uma parenta que a havia deserdado. De acordo com a lei francesa da época, Marguerite precisava deixar temporariamente a ordem religiosa, a fim de receber uma herança à qual acreditava ter direito. Em terceiro lugar, a irmã Delamarre pertencia à abadia clarissa de Longchamp, o mais liberal dos mosteiros parisienses de então, reconhecido por sua grande afluência mundana e pelas visitas frequentes recebidas pelas freiras. Em quarto lugar, a irmã Delamarre era justamente a mediadora dessas visitas, tendo sido, durante 15 anos, nada menos que a porteira do convento. Dona das chaves, portanto, ela podia sair e entrar quando bem entendesse.

Marguerite Delamarre, freira da Ordem de Santa Clara, morreu trinta anos depois de Diderot, sempre no mesmo convento, ao qual retornou de bom grado após ter perdido o processo referente à sua herança. Um dos últimos documentos encontrados por May atesta sua existência em 1790, atribuindo-lhe a idade de setenta e três anos. A Bastilha fora tomada no ano anterior, e a congregação fundada em 1225 pela beata Isabel de França, irmã de São Luís, sofreu o destino de todos os estabelecimentos monásticos do reino: a lei geral de fevereiro de 1790 ordenou a sua dissolução. Recusando-se a deixar o claustro, todavia, as freiras se ofereceram para educar as meninas da região. O referido documento, com data de 24 de julho de 1790, indica a presença de nove freiras na abadia, as quais assinaram uma declaração conjunta expressando o desejo de viver e morrer em Longchamp. Dentre os nomes da lista, o primeiro era o da irmã Delamarre.

Fernando Schüler não foi o primeiro a ser enganado pela malícia anticlerical dos philosophes. O primeiro talvez tenha sido Marc-Antoine-Nicolas, o Marquês de Croismare, um amigo pessoal de Diderot

Segue-se que, relativamente informado sobre a cultura intelectual do anticlericalismo francês do século 18, fiquei logo com a pulga atrás da orelha ao deparar-me com as referências voltaireanas ao caso de Jean-François de La Barre no artigo de Schüler. Embora jamais tivesse me debruçado sobre as fontes históricas desse episódio específico, minha primeira impressão foi a de que a descrição de Voltaire era uma espécie do gênero martirológio secularista, caracterizado por narrar a via crucis dos representantes da razão sob as garras do obscurantismo religioso, e até hoje muito influente nos meios liberais e progressistas.

Num grupo de WhatsApp no qual se discutia a impactante coluna de Schüler, um amigo movido pelo mesmo ceticismo resolveu ir atrás do caso La Barre, e logo deu o caminho das pedras para a verdade dos fatos. E os fatos, como ambos suspeitáramos, eram bem diferentes do que nos fez crer Voltaire, tão diferentes quanto Suzanne Simonin, a personagem fictícia criada por Diderot, e Marguerite Delamarre, “a religiosa” da vida real.

Antes, contudo, de chegarmos aos fatos, partamos de uma premissa óbvia, sem a qual a intepretação iluminista desses fatos será sempre incompreensível. Para os iluministas franceses, o cristianismo era nada menos que uma religião torpe. Mesmo Voltaire – que nunca chegou a ser um materialista ateu como d’Holbach, Helvétius ou La Mettrie, demonstrando, ao contrário, certa devoção deísta a uma divindade sobrenatural – moveu uma luta visceral contra a fé cristã, ainda que, até a década de 1760, costumasse atenuar sua retórica anticristã ocultando-a sob a aparência de mero anticlericalismo. Como explica o historiador do Iluminismo Peter Gay:

“Voltaire trabalhou em silêncio, cultivou a sua raiva, e esperou – ele podia esperar. Entrementes, mascarou publicamente a sua fúria anticristã como sincero anticlericalismo. Foi apenas muito mais tarde, por volta de 1760, que Voltaire rejeitou toda transigência e jogou fora muito de sua cautela. Acontecera muita coisa, tanto com o movimento quanto com ele. Escritores radicais foram perseguidos, e Enciclopedistas dedicados sofreram constrangimentos; a era da cruzada anticristã acelerou-se.”

Foi por aquela época que Voltaire começou a adotar o célebre “Écrasez l'Infâme” (“Esmagar a Infame”) como assinatura pessoal, ao final de cartas e artigos. Tratava-se de um eficaz apelo aos brios dos cruzados anticristãos, razão pelo qual ele foi homenageado por Diderot com o epíteto “sublime, honorável e estimado anticristo”. Nas palavras de Gay:

“Nenhum epíteto teria sido mais adequado: uma simples visada na corrente de panfletos que jorrou de Ferney nos últimos 16 anos da vida de Voltaire revela um asco pelo cristianismo beirando quase a obsessão. Intérpretes que restringem ‘a infâmia’ à intolerância, ao fanatismo, ou ao catolicismo romano recusam uma conclusão à qual o próprio Voltaire chegara naqueles anos frenéticos: era de se esperar que todo homem sensato e honrado nutrisse verdadeiro horror à seita cristã.”

Sobretudo a partir dos anos de 1760, portanto, é preciso ter em mente que Voltaire abordava todos os episódios referentes a eventuais abusos de poder clerical movido por “um asco pelo cristianismo beirando quase a obsessão”. Sua abordagem do caso de Jean-François de La Barre não foi diferente. Que sua versão nunca tenha sido digna de crédito, aliás, é significativamente ilustrado pelo fato de que até mesmo a Wikipedia em inglês o assinala:

As duas versões de Voltaire sobre a história eram polêmicas, não históricas, contradizendo-se mutuamente. A primeira, Relation de la mort du chevalier de la Barre, par M. Cassen, avocat au conseil du roi, à M. le marquis de Beccaria (1766), culpa Belleval, um vizinho da ‘tia’ de La Barre (devido às suas numerosas imprecisões, essa versão foi quase imediatamente criticada por um impressor local de Abbeville). Já a segunda versão, intitulada Le Cri du sang innocent (1775), omite toda menção a Belleval e coloca a culpa em Duval de Soicourt, o juiz do caso. Posto que o processo acusatório tenha sido inteiramente secular (apesar de baseado na lei do Antigo Regime, que assumia o catolicismo como a religião do Estado e, portanto, definia vários delitos baseados na religião, a exemplo do sacrilégio e da blasfêmia), Voltaire superestima o papel da Igreja. Os únicos esforços específicos da hierarquia da Igreja foram a favor de comutar a execução planejada para prisão perpétua, conforme solicitado pelo Bispo de Amiens.”

Em 1920, depois de haver realizado uma pesquisa minuciosa nos arquivos do caso La Barre, o historiador Marc Chassaigne, da Academia Francesa, publicou Le procès du Chevalier de la Barre, livro no qual repõe a verdade dos fatos e esmiúça a participação de Voltaire no episódio. Schüler tem certamente razão ao dizer que, diante de injustiças, é preciso ser intransigente. O que não precisamos é seguir o exemplo de Voltaire, que, ao mentir sobre o caso, cometeu suas próprias injustiças no ato mesmo de denunciar as alheias, muito embora continue sendo visto como o grande e nobre defensor de La Barre.

Para os iluministas franceses, o cristianismo era nada menos que uma religião torpe

Logo de cara, o livro de Chassaigne esclarece os seguintes fatos: 1) François-Jean de la Barre nao foi morto na fogueira, mas decapitado. O que se queimou na fogueira posteriormente foi o seu corpo já sem vida; 2) tipificados na lei da época, de acordo com a religião oficial do Estado francês, os crimes de La Barre foram a blasfêmia e o sacrilégio, ambos passíveis da pena capital; 3) La Barre foi julgado por juízes locais e a sua sentença foi confirmada pelo Parlamento de Paris. Seu julgamento, condenação e execução foram obra do Estado francês, que, como veremos, mantinha com a Igreja da época uma relação complexa e ambígua; 4) contrariamente à versão de Voltaire, a participação da Igreja, representada pelo bispo Louis-François-Gabriel d’Orléans de La Motte, da diocese de Amiens, consistiu em intervir misericordiosamente em favor do réu. Como informado no próprio verbete da Wikipedia, o bispo La Motte interveio insistentemente junto ao rei para que o réu tivesse a sua pena comutada de execução para prisão perpétua.

Recorde-se que a França era, então, uma nação profundamente católica, na qual casos de vilipêndio a objetos de fé costumavam despertar intensa revolta popular, desejos de vingança e processos de linchamento. Como, em tais ocasiões, fazia desde a criação medieval dos tribunais da Inquisição (originalmente concebidos para conter os excessos cometidos por autoridades locais e pelos fiéis em geral na reação contra a heresia cátara), a Igreja procedeu a um ritual público de reparação a Deus, rogando-Lhe em seguida pela conversão dos malfeitores.

Curiosamente, o discurso proferido no ano anterior pelo bispo La Motte, na cerimônia de reparação após a profanação do Crucifixo de Abbeville (pela qual La Barre não foi acusado), foi descrito por Voltaire como uma incitação à violência contra La Barre. Mas a publicação integral do texto do discurso, por obra de Chassaigne, restabeleceu o seu verdadeiro sentido, que a amputação editorial feita pelos influenciadores anticlericais havia distorcido:

“Quão doloroso não é [exclamou o bispo de Amiens em agosto de 1765] ver cristãos que só devem esse precioso título aos méritos do Deus crucificado demostrarem ingratidão ao ponto de ultrajá-lo até na sua imagem na Cruz! Por isso, tornaram-se dignos dos últimos suplícios neste mundo e das penas eternas no outro; mas porque nenhum pecado é irreparável diante da vossa misericórdia, ó meu Deus, quando ela é implorada pelos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós pedimos essa mesma misericórdia e esses mesmos méritos para obter a conversão daqueles que cometeram tão grande impiedade. Perdoai, ó meu Deus! Transformai seus corações de pedra em corações de carne, para que, reconhecendo sua própria maldade, eles venham se unir a nós para lamentá-la e repudiá-la.”

Mas, caso a divulgação do inteiro teor do discurso não baste para desacreditar a versão de Voltaire, segundo a qual La Barre foi uma vítima da Igreja, as ações subsequentes do bispo La Motte em favor do réu dissiparão qualquer resquício de dúvida. Pois foi com esse espírito de misericórdia, justamente, que se deu a sua primeira intervenção significativa no caso, feita em 27 de junho de 1766, quando, em carta ao procurador-geral do Parlamento, o clérigo pedia a suspensão da pena até que ele conseguisse convencer o rei a preservar a vida dos culpados. Nas palavras do bispo:

“Peço-lhe, Senhor, que suspenda ao máximo a execução da sentença de Abbeville contra os acusados de impiedade. Estamos trabalhando para que o rei mude a pena de morte para prisão perpétua. É certo que nada sofrerá com a demora que tomo a liberdade de vos pedir. O público ficaria feliz com o confinamento e seria o suficiente para evitar que o número de ímpios aumentasse.”

Contudo, o bispo de Amiens não se limitou a escrever a carta, multiplicando também os esforços para a sustentar. Quando o procurador-geral respondeu declarando-se impotente para conceder a suspensão solicitada, La Motte dirigiu-se diretamente ao rei, envolvendo os colegas bispos nesse seu generoso lobby por clemência, lamentavelmente fracassado. Segundo escreve Jean Guiraud, prefaciador do livro de Chassaigne:

“O bispo de Amiens tinha falhado em seus esforços, mas o quão persistentes foram eles se mede pelo fato de que, até o momento final, ainda se acreditava na suspensão da execução, tanto em Abbeville quanto em Paris. Os documentos publicados por M. Chassaigne provam de maneira irrefutável que, longe de perseguir cruelmente aquele jovem leviano que lhe dedicava um ódio grosseiro, a Igreja fez todo o possível para salvá-lo. La Barre foi executado apesar de os padres terem sido seus únicos defensores diante do rei. Eis o que a verdadeira história deve proclamar diante das afirmações tão falsas quanto apaixonadas do anticlericalismo.”

O livro de Chassaigne ajuda-nos também a compreender por que não foram atendidos os apelos do bispo de Amiens, e as possíveis razões para a severidade da sentença de La Barre. O autor faz uma análise muito interesse da psicologia dos parlamentares franceses da época, os quais, apesar de majoritariamente céticos e amigos dos philosophes, condenaram o blasfemo ainda assim.

A partir dos anos de 1760, Voltaire abordava todos os episódios referentes a eventuais abusos de poder clerical movido por “um asco pelo cristianismo beirando quase a obsessão”

Apesar de haver aplaudido a supressão dos jesuítas, a França era ainda, como dissemos, profundamente católica, e, portanto, preocupada com a aliança entre o Parlamento e os pensadores materialistas, deístas e ateus. Então, em grande pompa, na Praça do Mercado, queimavam-se livros iluministas e denunciava-se, com extremo vigor, a sociedade formada para apoiar o materialismo, destruir a religião e fomentar a corrupção dos costumes. Quando, influenciados pelos philosophes, os deputados tomavam alguma decisão contra a Igreja, sentiam necessidade imediata, como numa gangorra, de dar um golpe forte nos ateus, de modo a demonstrar inequivocamente a sua ortodoxia. Em 1766, essa oportunista política de morde-assopra ditava mais do que nunca as decisões do Parlamento francês.

Precisamente em 1765, a Assembleia do Clero havia denunciado ao rei a audácia da “filosofia”, protestado contra a dispersão dos jesuítas e a supressão da bula Unigenitus, que condenava o jansenismo. Por sua vez, o Parlamento ordenara a abolição dessa deliberação do clero, lançando ao fogo a carta do arcebispo de Reims, sob o argumento da necessidade de retirar do clero os meios de protesto em nome da religião. Mas, a título compensatório, seu presidente fez chegar a Luís XV manifestações de respeito e gratidão à Igreja: “Vossa Majestade, o seu Parlamento nunca esquecerá o que deve à Igreja e aos seus ministros... A Igreja é a coluna da verdade”.

Uma vez que essas manifestações de respeito clerical foram feitas em abril de 1766 e o conflito com a Assembleia do Clero remontava a setembro de 1765, nota-se que o caso La Barre ocorreu justamente na janela temporal entre os ataques do Parlamento contra a Igreja da França e as manifestações de zelo religioso que os deputados julgaram necessário devotar ao rei. Portanto, como argumenta Chassaigne, a severidade do Parlamento no julgamento que condenou definitivamente La Barre não foi inspirada nem pela Igreja Católica – com a qual estava precisamente em conflito – nem pelo próprio fanatismo religioso – já que muitos dos seus membros aderiram às ideias dos filósofos –, mas sobretudo pelo desejo de usar o suplício de La Barre como argumento contra as acusações de deísmo e materialismo feitas pelo episcopado.

Enquanto isso, o que fazia Voltaire? Certamente, também os seus cálculos políticos. Ocorre que, ainda que sua situação fosse bem menos trágica (pois tudo o que arriscava era ver seus livros, mas não a sua pessoa, queimados na fogueira), ele havia sido processado junto com La Barre. Como, de fato, um exemplar do seu Dictionnaire Philosophique fora encontrado nos aposentos de La Barre, em meio à literatura frívola e obscena que fazia a cabeça do jovem libertino, o tribunal de Abbeville iniciou o processo do Dictionnaire ao mesmo tempo que o de La Barre.

Mas, ainda que não estivesse direta e pessoalmente ameaçado, pois era notória a sua influência junto à corte, à nobreza e à alta burguesia para que se lhe ousassem perseguir, Voltaire demonstrou um nervosismo excessivo. Durante os meses trágicos do verão de 1766, ao ser informado de que seu livro se sentara no banco dos réus ao lado de La Barre, um medo incontrolável apoderou-se de sua mente. Nessa ocasião, escreveu ao amigo d’Alembert: “Estou partindo rapidamente para países estrangeiros. Lá, terei o consolo de não ver meus amigos serem torturados, enforcados, esquartejados para que eu os siga, e de não ser eu mesmo torturado, enforcado ou esquartejado”.

Quando soube das diatribes contra os philosophes proferidas por Denis-Louis Pasquier no Parlamento, Voltaire concluiu já não haver mais segurança para ele em Ferney. Em suas cartas aos amigos, qualificava os juízes de La Barre de “Busíris” e “canibais”, cuja barbárie “faria tremer os selvagens embriagados”. Guardava-se, por óbvio, de dizê-lo em público, bem como de fazer qualquer gesto em favor do acusado, antes e depois de sua condenação. Só conseguia, de fato, pensar numa coisa: manter-se em segurança, abrindo distância entre ele e os juízes.

Avaliando a possibilidade de um refúgio em Rolle, na Suíça, julgou-a muito perto da França, e compartilhou com amigos sua intenção de se refugiar em Clèves, nas terras do rei da Prússia. Segundo Chassaigne:

“Tronchin, seu médico, que o viu nesses dias de fraqueza, por mais que lhe tentasse fazer ver ‘a absurdidade de seu medo de que a França viesse, por um descuido, capturar um idoso em território estrangeiro para enviá-lo à Bastilha’, nada podia tranquilizá-lo, e o médico acabou se admirando de que ‘uma mente organizada como a dele se perturbasse tanto’.”

Em carta a Richelieu, de 19 de agosto de 1766, Voltaire admitiu que a tempestade recaída sobre o tolo cavaleiro La Barre o fizera abaixar a cabeça. “O mal é que essas acusações chegam ao rei... Em tais circunstâncias tão funestas, os sábios devem calar e esperar”. Calado e esperando o fim do julgamento, e sobretudo nos dias seguintes à execução da terrível pena, Voltaire não ousou defender La Barre. Sua única preocupação era salvar a própria pele e não perder as graças reais. Assim é que, nos dias que precederam e sucederam a execução de La Barre, escreveu cartas a todos os seus amigos, que as deveriam repassar às autoridades, a fim de desautorizar o pobre jovem a quem, a partir de então, o filósofo passaria a tratar invariavelmente por “louco” e “desmiolado”.

São compreensíveis, embora talvez exagerados, os temores de Voltaire, que resolveu esperar quase uma década para defender La Barre de maneira mais contundente. O problema, portanto, é menos o do timing da defesa que o de sua intenção e método. Porque, em nome da causa, Voltaire, Diderot e outros pretensos bastiões da tolerância e da justiça jamais hesitaram em falsificar o material histórico que lhes caía em mãos, de modo a consagrar a mitologia anticlerical, com o seu rol de mártires da razão e do livre pensar.

A atual magistratura brasileira, principal fonte dos abusos de poder tão bem apontados por Schüler, é muito mais herdeira de Voltaire e Diderot do que de seus adversários de então

Eis uma primeira razão por que não os encaro como aliados ideais no nosso presente anseio por justiça. Uma segunda razão consiste no fato de que, por seu irredutível elitismo e complexo de professores da humanidade (ou, se preferirem, de “editores de um país inteiro”), vejo a atual magistratura brasileira, principal fonte dos abusos de poder tão bem apontados por Schüler, muito mais como herdeira dos próprios Voltaire e Diderot do que de seus adversários de então.

De fato, os philosophes nunca esconderam esse elitismo, não raro manifesto sob a forma de uma escancarada demofobia. Quando Diderot anunciava a nova era científica e racional, deixava claro que dela não faria parte a massa de pessoas comuns. “A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, essa marcha progressiva do espírito humano” – decretou em O Sobrinho de Rameau. “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito. A multidão é ignorante e confusa. Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas” – escreveu no verbete “Multidão”, da Enciclopédia.

Quando Voltaire atribuía a “todo homem sensato e honrado” a missão de odiar o catolicismo, não tinha em mente o homem comum do povo, cuja ignorância o impediria de desenvolver tanto a sensatez quanto a honra. Em sua visão, o povo era demasiado “imbecil”, “bestial”, “miserável” e “ocupado” para iluminar a si próprio: “A quantidade de canaille [populacho] mantém-se sempre mais ou menos estável”. Daí que as luzes da razão não fossem para o bico do populacho. “Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais” – costumava troçar o castelão de Ferney –, “esse é um trabalho para os apóstolos”.

Contemplando o Estado brasileiro contemporâneo dessa perspectiva, não há como deixar de notar a semelhança entre a cosmovisão da intelligentsia iluminista e a dos representantes da nossa “noblesse de robe”. Afinal, temos magistrados supremos – que, à moda dos philosophes setecentistas, também opinam sobre tudo – justificando práticas jurídicas excepcionalíssimas como meios para aplicar um “choque de iluminismo” e denunciando, com a cara mais lavada do mundo, a sobrevivência do que veem como “guetos pré-iluministas” e a ascensão dos “imbecis”. Como Voltaires e Diderots do Cerrado, esses magistrados-filósofos chegam a assumir com orgulho o “papel iluminista” da corte, em conjunturas nas quais seria preciso “empurrar a história”.

Ora, não se pode apelar a Voltaire para remediar justo uma instituição tão voltaireana. Pois é precisamente nessa vetusta sensibilidade iluminista, nessa ilusão de representar o futuro, a razão e a ciência contra o obscurantismo de la canaille (bolsonarista?), na convicção de tudo valer pela causa, que se fundam os atuais abusos de poder da suprema corte brasileira. Daí que, na presente situação nacional, invocar o fantasma do castelão de Ferney é como deitar sal em feridas abertas e apagar o incêndio com gasolina.

Mas, se os seus escritos anticlericais não nos proveem boa lição, talvez o possa fazer a vida mesma do célebre pensador, e sobretudo a sua hora derradeira. E, por sorte, acerca dos últimos momentos da vida de Voltaire, temos o registro impressionante em Dying Testimonies of the Saved and the Unsaved, obra clássica do historiador e pastor metodista Solomon B. Shaw, publicada em 1898 após uma extensa e minuciosa pesquisa de fontes biográficas, incluindo documentos pessoais, acervos públicos e testemunhos. Ei-lo, pois:

“Quando Voltaire sofreu o AVC que sabia ser terminal, foi dominado por um profundo remorso. Imediatamente, mandou chamou um padre, desejando ‘reconciliar-se com a Igreja’. Seus aduladores infiéis correram ao quarto para impedir-lhe a retratação, mas só conseguiram presenciar ignomínia – a do moribundo e a sua própria. Encarando-os nos olhos, Voltaire os amaldiçoou e, com a angústia aumentada por sua presença, exclamou repetida e veementemente:

– Ide embora! Fostes vós que me trouxestes a esta condição. Saí, eu digo. Ide embora! Que glória miserável me legastes!

Na esperança de aliviar sua aflição com uma retratação escrita, ele a preparou, assinou e a viu ser testemunhada. Tudo em vão. Durante dois meses, foi torturado por uma agonia tão intensa que, em certos momentos, chegava a ranger os dentes de raiva impotente contra Deus e contra os homens. Noutros momentos, em tons lamuriosos, suplicava: ‘Ó, Cristo! Ó, Senhor Jesus!’. Então, virando o rosto, gritava: ‘Devo morrer – abandonado por Deus e pelos homens!’.

À medida que o fim se aproximava, sua condição tornou-se tão terrível que os companheiros de descrença tinham medo de se lhe achegar ao leito. Ainda assim, guardavam a porta, para que outros não soubessem o quão terrivelmente morria um infiel. E até a enfermeira afirmava repetidamente: ‘Por toda a riqueza da Europa, nunca mais quero ver morrer outro infiel’. Foi uma cena de horror além de todo exagero. Eis o bem documentado fim daquele que foi dotado com uma soberania natural de intelecto, excelente educação, grande riqueza e muita honra terrena.”

É nessa vetusta sensibilidade iluminista, nessa ilusão de representar o futuro, a razão e a ciência contra o obscurantismo de “la canaille”, na convicção de tudo valer pela causa, que se fundam os atuais abusos de poder da suprema corte brasileira

A autenticidade do relato contido no livro do reverendo Shaw é reforçada pelo conteúdo da carta-testamento do próprio Voltaire. Ocorre que, em 20 de fevereiro de 1778, poucos meses antes de sua morte, o philosophe recebera uma carta do padre jesuíta Aloïsius Édouard Camille Gaultier, conhecido simplesmente como abade Gaultier, que se interessara pela possível conversão do célebre pensador. No dia seguinte, respondeu Voltaire a Gaultier:

“A sua carta, caro senhor, parece-me provir de um homem honesto: e isso basta para que eu tenha decidido aceitar a sua visita no dia e na hora que achar conveniente. (…) Tenho 84 anos de vida, e estou prestes a apresentar-me perante Deus, o Criador de todo o universo. Se tem algo para me dizer, será meu o privilégio de o receber, apesar do sofrimento que me acompanha.”

Mais tarde, naquele mesmo dia, Voltaire concederia ao abade Gaultier uma longa entrevista, na qual o aceitou como seu confessor. Pouco mais de uma semana depois, em 2 de março, assinaria enfim a sua profissão de fé, tal como reproduzida no 12.º tomo da Correspondance Littéraire, Philosophique et Critique, de Grimm e Diderot:

“Eu, o que escreve, declaro que, tendo vertido um vômito de sangue faz quatro dias, na idade de 84 anos, e estando impossibilitado de ir à igreja, recebi do pároco de São Suplício a generosa oferta de me enviar um padre, o Sr. Gaultier. Confessei-me a ele e, se Deus assim o quiser, morrerei na santa religião católica em que nasci, esperando da divina misericórdia que se digne a perdoar todos os meus pecados; e, se alguma vez escandalizei a Igreja, peço perdão a Deus e a ela.
Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778, na casa do Sr. Marquês de Villette, na presença do Sr. abade Mignot, meu sobrinho, e do Sr. Marquês de Villevieille, meu amigo.”

E esse foi um dos últimos escritos de François-Marie Arouet, nascido em 21 de novembro de 1694, falecido em 30 de maio de 1778, e por toda a vida conhecido como Voltaire. A postura no leito de morte e o texto de sua carta-confissão contêm, talvez, a mais válida de suas lições, dando-nos a ver que até mesmo um homem diuturnamente dedicado à missão de “écraser l’infâme”, ou esmagar a Igreja, pode terminar seus dias na urgência de “supplier pour l’infâme”, ou suplicar por ela.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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