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Flavio Quintela

Flavio Quintela

A vantagem de ser Estados Unidos em vez de República Federativa

Nada faz tão bem à indústria de armas norte-americana quanto um democrata na Casa Branca. (Foto: Ibro Palic/Pixabay)

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Por mais contraditório que pareça, não há nada melhor para a indústria de armamentos que um governo democrata. Pouco antes da vitória de Trump em 2016, a mera possibilidade de que Hillary Clinton fosse eleita presidente dos Estados Unidos causou um pico nas consultas de antecedentes criminais – um termômetro bastante fiel das vendas de novas armas no país – e uma escassez de certos calibres e, principalmente, de munição. Bastou que Trump fosse eleito para que esses números recuassem imediatamente. Aliás, no dia seguinte à eleição, as ações das fabricantes Sturm Ruger e Smith & Wesson caíram 15%, mostrando uma realidade facilmente comprovável por dados das últimas quatro décadas: os democratas fazem bem às vendas de armas nos Estados Unidos.

E não tem sido diferente com Joe Biden no poder. A retórica antiarmamento do atual presidente tem esvaziado as prateleiras de lojas de armas por todo o país. O preço da munição está quase 300% acima do que era dois anos atrás e os fuzis, cuja possibilidade de banimento é frequentemente posta em discussão quando há um democrata no poder, estão sempre em falta. Mais que isso, o que até então vinha sendo um fenômeno um tanto restrito à questão comercial do setor de armamentos parece ter invadido o campo político de forma consistente após a tomada da Casa Branca e do Senado pelos democratas. Legislaturas estaduais de diversos estados “vermelhos” – aqueles com forte presença republicana na política local – têm agido preventivamente no sentido de evitar que políticas impostas pelo governo federal tenham efeito em seus territórios de influência.

A tomada tripla do poder federal pelos democratas parece ter acordado legislaturas republicanas de diversos estados, desencadeando um fenômeno poderoso de fortalecimento político local

No último 28 de abril, Montana juntou-se a uma lista crescente de estados e condados que tomaram ações concretas para limitar ou anular o poder de possíveis leis federais de controle sobre armas. Assim, o governador Greg Gianforte assinou a Lei 258, que proíbe os oficiais das forças policiais do estado, os funcionários públicos estaduais e quaisquer funcionários de qualquer subdivisão política de Montana de ajudarem no cumprimento de qualquer lei federal que venha a ser criada para banir ou limitar a venda de armas ou munições.

O esforço legislativo de Montana juntou-se a ações semelhantes em Nebraska, Alaska, Arizona, Kansas, Idaho e Wyoming. E outras mais devem acontecer em breve. No dia 8 de abril de 2021, o governador do Texas, Greg Abbott, tuitou o seguinte: “Biden está ameaçando nossos direitos garantidos pela Segunda Emenda. Ele acabou de anunciar um novo poder liberal de confiscar nossas armas. Nós NÃO permitiremos isso no Texas. Está na hora de o Legislativo criar leis que tornem o Texas um santuário da Segunda Emenda e colocá-las na minha mesa para assinatura”. O texano tuitou já sabendo do que estava por vir. O projeto de lei HB2622, cujo escopo é idêntico ao da Lei 258 de Montana, foi aprovado pela Câmara de Representantes estadual no último dia 30, e segue agora para o Senado estadual, onde deve ser aprovado com facilidade. Obviamente, Abbott sancionará a lei assim que for posta em sua mesa.

E apenas dois dias atrás, o governador da Flórida, Ron DeSantis, assinou a lei SB1884, que impõe penas de até US$ 100 mil de multa para governos locais (prefeituras e condados) que imponham restrições sobre a compra de armas e munições a seus moradores, caso estes busquem indenização judicial decorrente de tais restrições. Desde 1987 a Flórida tem leis que restringem o poder de cidades e condados no tocante à regulamentação da venda e uso de armas de fogo – estão proibidos de passar qualquer legislação local que seja mais restritiva que a legislação estadual correspondente. A lei SB1844 garantirá que isso seja cumprido e limita a possibilidade de apelos e recursos à Suprema Corte estadual.

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Fora do âmbito da Segunda Emenda, os estados também têm legislado ativamente para proibir o ensino da “Teoria Crítica Racial”. Segundo essa linha de pensamento, a raça está intrinsicamente presente em todas as interações humanas, na própria dinâmica da vida em sociedade, e a experiência humana é uma luta constante de poder entre diferentes raças (um besteirol sem limites, em minha modesta opinião). O próprio DeSantis informou, em março deste ano, que essa teoria será eliminada do currículo escolar estadual em todas as suas camadas. No Arkansas, uma nova lei foi aprovada banindo o ensino da Teoria Crítica Racial em qualquer agência pública, e também proibindo o estado de promover os conceitos de culpa coletiva, segregação e estereótipo racial. Alguns estados que já aprovaram leis semelhantes são Idaho, Oklahoma e Missouri. E a onda deve continuar com Texas, Tennessee e outros. Mais uma vez, as legislaturas estaduais desafiam frontalmente as resoluções do governo federal.

Para grande parte dos norte-americanos, a frase de Sarah Huckabee Sanders em seu vídeo de candidatura ao governo do Arkansas faz todo sentido: o governo estadual é a última linha de defesa contra um governo federal que tente corromper a democracia, vilipendiar a Constituição e cercear as liberdades individuais. A tomada tripla do poder federal pelos democratas parece ter acordado legislaturas republicanas de diversos estados, desencadeando um fenômeno poderoso de fortalecimento político local. Esse fenômeno está na própria essência do modelo federativo americano, e vinha há décadas sendo deixado de lado, ao mesmo tempo em que crescia o protagonismo do governo federal. A polarização política atual só tende a amplificar o movimento dos estados vermelhos em direção ao confronto direto com Washington. Como diz o ditado popular, há males que vêm para o bem.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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