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Foram duas semanas loucas desde meu último artigo. Não aqui em casa, é claro, já que estamos vivendo a Quarentena da Marmota. Os dias se seguem, invariavelmente, da seguinte forma: acordamos com as crianças chamando, café da manhã pra todo mundo, eu vou pro escritório trabalhar de porta fechada, esposa fica com os dois até a hora do almoço, sogra fazendo aula de inglês via Zoom; daí vem o almoço, minha menina vai dormir, esposa vai descansar, meu menino fica vendo tevê, sogra fica de plantão caso as crianças precisem de algo, eu volto a trabalhar; fim da tarde, fazemos algo juntos, depois jantar, colocar os dois na cama, tomar banho, ver uma série ou programa de tevê e dormir.
Diante de tamanha rotina, de onde vem a loucura que mencionei? Do Brasil, é claro. Mais precisamente, do bolsonarismo. Tenho acompanhado o enfrentamento da pandemia em vários países, comunicando-me com amigos que moram na Itália, Portugal, Suécia, Austrália, Canadá, Inglaterra e outros lugares. Em nenhum outro canto civilizado do planeta a coisa chegou ao nível de politização, incompetência e irracionalidade do Brasil.
Os apoiadores do governo fazem pouco dos mortos e da letalidade do vírus, tratando os idosos e outros grupos de risco com o mesmo desdém que a esquerda sempre mostrou por bebezinhos abortados
Imagine um teste com a pergunta “escolha uma maneira negativa de se lidar com uma grande crise”:
a) O presidente da República, em vez de concentrar seu foco e trabalho em ações concretas para mitigar os efeitos da pandemia, tanto na saúde como na economia, prefere se manter em um jogo político infantil e sem fim, trocando farpas com o ministro da Saúde, fazendo aparições desafiadoras em público, brigando com os outros poderes e com diversos governadores, e culpando a imprensa por tudo;
b) Alguns ministros, em vez de ajudarem a apagar esse fogo, jogam mais lenha. Já tivemos divulgação de estatísticas falsas, xingamento do governo chinês, teorias da conspiração, piadas completamente inconvenientes, ligações telefônicas vazadas etc.;
c) A contagem de casos e mortes mostra indícios de subnotificação em massa, e o Brasil é um dos países que fazem menos testes por milhão de habitantes;
d) Grupos bolsonaristas saem em passeatas e carreatas contra as medidas de isolamento, chegando ao absurdo de fazerem uma dancinha da morte em plena Avenida Paulista, com caixão e tudo;
e) A blogosfera governista começa a usar argumentos semelhantes para criticar o isolamento, circulando a ideia de que “não basta viver, há de se ter um sentido para que seja considerada vida de verdade”.
Parece que nosso país resolveu marcar todas as opções.
No front ideológico, o que se pode ver claramente é uma escalada de desumanização das pessoas. Bolsonaro não foi capaz de se solidarizar com nenhuma vítima brasileira da Covid-19 até o momento. Ignorou os mortos porque quer manter sua posição insana de negacionismo, para a qual é muito mais vantajoso discorrer sobre as consequências da crise econômica, incluindo as mortes que possam dela advir. Entre os mortos no subjuntivo e os mortos morridos, ele fica com os primeiros. Os apoiadores do governo, especialmente os que compõem o ecossistema chapa-branca de blogs e canais de notícias, também fazem pouco dos mortos e da letalidade do vírus, tratando os idosos e outros grupos de risco com o mesmo desdém que a esquerda sempre mostrou por bebezinhos abortados. Basta um mínimo de observação atenta para se descobrir o germe da eugenia no meio dessa bagunça toda. Todas as vidas são valiosas, mas algumas são mais que as outras, diria o eugenista light.
É claro que o povo, como sempre, continua pagando o pato. O governo não foi capaz de enviar nenhuma ajuda financeira até agora, nem mesmo míseros R$ 200. Microempresários não têm uma linha de crédito sequer para bancar sua folha de pagamento. Aqui, nos Estados Unidos, a Secretaria de Pequenos Negócios está disponibilizando uma linha que cobre até dois meses e meio de folha, com a possibilidade de perdão total da dívida se os empregos forem mantidos. O governo brasileiro poderia fazer algo semelhante, além de isentar o micro e pequeno empresário dos impostos sobre folha durante algum tempo. Ainda não fez nada, e duvido que faça.
Como diz o ditado de WhatsApp, entre a vergonha e a desonra, Bolsonaro escolheu os dois. Pode ser que saia dessa crise com alguma força, pois já ficou claro que sua base de apoio está disposta a aceitar qualquer lixo ideológico em nome da sustentação do mito. Mas, dependendo da contagem final de mortos, pode sair menor, mais condizente com seu tamanho moral. É uma aposta que ele está disposto a fazer, mesmo que custe milhares de vidas. Qualquer que seja o resultado, o Brasil perde.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos