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Flavio Quintela

Flavio Quintela

Toda virtude será enterrada

O projeto altera o Estatuto do Desarmamento.
Decretos de Bolsonaro sobre armas estão sendo questionados no STF. (Foto: Rudy and Peter Skitterians/Pixabay)

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Como já escrevi em outras oportunidades, diversas pautas conservadoras estão sendo esquecidas, deixadas de lado ou mesmo combatidas somente pelo fato de Jair Bolsonaro se colocar a favor delas. Foi assim com a questão do voto impresso e da liberdade de expressão, e certamente está sendo com a questão do desarmamento.

Quando lancei meu segundo livro, em 2015, recebi cumprimentos efusivos e elogios por parte de quase todos os influenciadores do conservadorismo brasileiro. À época, todos concordavam com a tese central do livro, de que é direito do cidadão possuir e portar armas de fogo para garantir seu direito de defesa contra criminosos e contra um eventual arroubo autoritário do Estado. O embasamento dessa tese não foi desvendado somente no título de minha autoria, Mentiram Para Mim Sobre o Desarmamento, mas também em obras que traduzi como Preconceito Contra as Armas, de John Lott Jr., e Violência e Armas, de Joyce Lee Malcolm.

Grande parte dos eleitores que votaram em Jair Bolsonaro em 2018 concorda com o que meu livro expõe. Não só concorda, como votou nele na esperança de que houvesse uma ação do Executivo que levasse a mudanças profundas na legislação brasileira sobre esse tema. Em outras palavras, esses eleitores esperavam que o Estatuto do Desarmamento fosse revogado e que nossas leis fossem revistas no intuito de aumentar o acesso dos cidadãos cumpridores da lei às armas de fogo.

O armamento de um povo parte do pressuposto, antes de qualquer outra intenção, de que um Estado que decida apostar no autoritarismo terá mais dificuldades de subjugar um povo armado que um desarmado

Hoje, após mais de mil dias de governo, o que mais se vê são críticas às pouquíssimas mudanças que Bolsonaro fez no sentido de melhorar as leis que regulam o armamento civil, e muitas dessas críticas partindo das mesmas pessoas que apenas seis anos atrás concordavam com o que eu havia escrito. Pior que isso, tecem-nas com base em argumentos refutados pela obra cuja leitura até há pouco recomendavam.

Eu gostaria de recapitular alguns pontos importantes sobre o desarmamento civil e entender as ações do atual governo a respeito.

Para começar, quero lembrar ao leitor que o armamento de um povo parte do pressuposto, antes de qualquer outra intenção, de que um Estado que decida apostar no autoritarismo terá mais dificuldades de subjugar um povo armado que um desarmado. Tempos atrás eu tuitei algo a respeito, por conta do comportamento totalmente reprovável e ditatorial da polícia australiana para com os cidadãos comuns no tocante ao uso de máscaras. Disse que esse tipo de abuso não aconteceria em um país com a população armada. Lembro de alguém ter respondido alguma bobagem irônica do tipo “imagina que bonito seria as pessoas começarem a sacar armas contra a polícia”.

Obviamente, o autor do comentário não conseguiu apreender a realidade. Em uma sociedade armada, a polícia nem chegaria a obedecer ordens desse tipo. Mais que isso, ordens desse tipo nem sequer seriam criadas, já que não poderiam ser cumpridas. Tanto é assim que diversos condados nos Estados Unidos têm leis locais isentando seus policiais do cumprimento de qualquer lei estadual ou federal que implique no desrespeito à Segunda Emenda Constitucional, que garante o direito de defesa armada ao cidadão.

E é justamente no quesito da defesa pessoal que encontramos um segundo ponto importantíssimo: a polícia sempre chega depois do crime, ou seja, sempre chega tarde demais. É uma limitação física, do espaço-tempo. Ninguém consegue prever o futuro e, portanto, o policiamento ostensivo é uma tática baseada em estatísticas, mas sem nenhuma garantia de sucesso. Pode-se coibir a presença de criminosos com mais polícia, mas jamais se conseguirá eliminar o crime por completo, porque não há número suficiente de policiais para que isso aconteça. É somente pelas mãos da quase-vítima que se pode prevenir o crime, e na grande maioria das vezes sem que haja um disparo sequer.

Pode parecer óbvio quando dito assim, mas em locais onde a maioria das pessoas armadas tem um histórico consistente de obediência às leis, armas trazem muito mais benefícios que malefícios. Obviamente, quando tomamos o caso do Brasil, onde a maioria das armas está nas mãos de criminosos, a maioria delas será usada para o mal somente.

Pode-se coibir a presença de criminosos com mais polícia, mas jamais se conseguirá eliminar o crime por completo, porque não há número suficiente de policiais para que isso aconteça

Tendo em vista esses dois pontos principais, relembremos as mudanças feitas por Jair Bolsonaro nas regras para obtenção de posse de arma e munição. No início de seu mandato, ele fez a modificação mais importante de todas, tirando a discricionariedade do processo de obtenção da licença de compra de arma de fogo. Até então, o cidadão era obrigado a apresentar uma justificativa subjetiva para a necessidade de ter uma arma, e estava sujeito a uma análise subjetiva dessa justificativa. Com as modificações feitas via decreto, o governo eliminou a subjetividade.

Na soma com os decretos que assinou em abril de 2021, outros pontos foram melhorados, incluindo o número máximo de armas por pessoa, a quantidade de munição e outros detalhes que sempre dificultaram a vida do cidadão cumpridor da lei que deseja se armar para garantir sua proteção. Como eu já disse reiteradas vezes, as mudanças foram bastante tímidas, e representam uma parte pequena do que precisa ser feito. Infelizmente, Bolsonaro não investiu seu poder político no patrocínio de esforços legislativos nesse sentido, e alguns projetos de lei de longa data continuaram engavetados durante seu governo.

As críticas da grande imprensa ao pouco que ele fez chegam a ser pueris de tão ridículas. Vão desde “mas quem nesse mundo precisa de seis armas?” até “Bolsonaro está armando sua milícia para dar um golpe”. Nenhum desses argumentos tem a menor lógica ou lastro na realidade – recomendo a leitura do meu livro a quem ainda tenha dúvida de como refutá-los. O fato é que estamos assistindo a um contra-ataque da esquerda nesse tema, inclusive com a intervenção do STF, que chegou a derrubar alguns pontos dos decretos de abril deste ano antes mesmo que começassem a valer. Rosa Weber, por decisão individual, impediu o aumento da quantidade máxima de armas por pessoa de duas para seis, e também o aumento da quantidade de munição que pode ser comprada por clubes e escolas de tiro. Em frase sem nenhum cabimento, ela disse que “a ampla facilitação para o porte e aquisição de armas de fogo, inclusive de uso restrito, assim como o aumento expressivo de munições disponíveis e a diminuição da fiscalização pelos órgãos competentes produzem evidente retrocesso em direitos fundamentais”.

Foi Rosa Weber que causou um tremendo retrocesso em direitos fundamentais ao impedir que cidadãos tenham em suas mãos o poder bélico para não serem vítimas indefesas

Retrocesso, Rosa Weber? Por acaso os criminosos adquirem armas e munições legalmente, em lojas credenciadas e fiscalizadas pelo Estado? Por acaso eles treinam em clubes e escolas de tiro mantidas por empresários que cumprem a lei? Obviamente que não. Como todo e qualquer regulamento desarmamentista, as leis brasileiras só prejudicam quem não comete crime. Bandidos são, por definição, pessoas que não se esforçam em cumprir a lei. Foi a ministra que causou um tremendo retrocesso em direitos fundamentais ao impedir que cidadãos tenham em suas mãos o poder bélico para não serem vítimas indefesas. E a grande imprensa ecoa esse discurso bocó de que o armamento civil é algo secundário, sem importância diante de outras urgências, e de que Bolsonaro quer fazer do Brasil uma segunda Venezuela no continente sul-americano. Repetem clichês como “quero ver quem vai almoçar fuzil ou munição” e mantêm, propositadamente, o debate no nível mais raso possível.

Infelizmente, assim caminha o Brasil. No pouco que o presidente acerta, alguém se encarrega de estragar. É um país que não tem caminhos para a disseminação de boas proposições. É um país que aposta sempre nas piores soluções e que jamais está disposto a aprender com os erros. Aplaudem-se os vícios, enterram-se as virtudes.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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