Existe um grupo de pessoas que, em sua grande maioria, mantiveram o apoio a Bolsonaro de forma consistente: os que defendem o direito do cidadão a ter e portar uma arma de fogo para sua defesa. Você certamente já ouviu falar desse grupo na grande imprensa, provavelmente com um nome bem mais pejorativo, que invoca uma certa maldade, os “armamentistas”, como se fossem demônios que trabalham incessantemente com o objetivo de que cada pessoa no planeta tenha uma arma de fogo.
Como parte desse grupo, ainda que eu esteja na minoria que faz oposição ao governo atual, posso dizer que esse estereótipo nada mais é que um estereótipo. Com exceção de uns poucos lunáticos que sonham em ser Rambos, aqueles que defendem o direito de estarmos minimamente equipados para enfrentar criminosos e governantes totalitários são gente comum que trabalha, estuda, passeia, vai à igreja, tem família, paga impostos, fica em quarentena e tudo mais que se faz em sociedade.
Sendo autor do livro mais vendido no Brasil sobre o tema do desarmamento, já recebi centenas de mensagens de leitores decepcionados com minha oposição a Bolsonaro. O conteúdo é sempre o mesmo, basicamente uma indignação por eu ser contra “o único presidente que realmente luta pelo direito de defesa do cidadão de bem”. Na verdade, a maioria delas é xingamento puro, mas as que contêm alguma crítica real vão sempre nessa direção. O que esses leitores não entenderam, e espero que comecem a entender depois deste texto, é que a posição do presidente sobre esse tema não passa de um teatrinho para agradar o eleitorado, como tudo mais que ele diz em público.
Bolsonaro se diz conservador, cristão e defensor da família de cima de uma história de três casamentos e intrigas familiares que incluem obrigar o filho caçula a concorrer com a própria mãe nas urnas. Da mesma forma, se diz defensor do armamento de civis obedientes à lei de cima de uma história de relacionamentos com gente bandida, de condecorações a milicianos comprovadamente criminosos. Isso é o que sabíamos até a semana passada. Com a indicação de Kassio Marques para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro deixa muito claro que seu posicionamento pró-armas não passa de discurso vazio. Explicarei o porquê.
A posição do presidente sobre esse tema não passa de um teatrinho para agradar o eleitorado, como tudo mais que ele diz em público
Para que um cidadão tenha o direito real de se defender de criminosos que atentem contra sua vida ou contra sua família, é necessária a existência de um conjunto específico de condições. Esse conjunto é composto de um núcleo mínimo e de um entorno opcional, por assim dizer. O núcleo mínimo tem cinco condições sine qua non para que seja estabelecido, de fato, o direito de defesa a um cidadão: direito à posse de arma de fogo, direito ao porte de arma de fogo, regramento policial que sustente esses dois direitos, regramento judicial que sustente esses dois direitos e oferta de defesa advocatícia em valor factível à maioria da população. Vejamos cada um deles em detalhes.
Direito à posse de arma: o único ponto em que Jair Bolsonaro concretizou alguma mudança em relação às regras existentes antes de seu governo, o direito à posse de armas é o passo inicial de uma caminhada longa e difícil em direção ao pleno direito de defesa. Por ser a mais tangível de todas as condições e também a única em que havia espaço de manobra sem a necessidade de aprovação do Legislativo, foi a abordada pelo presidente. Logo em seu primeiro mês de governo, ele assinou um decreto mudando a regulamentação da compra de armas de fogo, retirando uma excrescência que vigorava até então, a discricionariedade na concessão da licença para compra. Até então, se um burocrata qualquer achasse que determinada pessoa não tinha razão para ter uma arma de fogo em casa, ele poderia negar a licença de compra. Com as mudanças, a discricionariedade acabou e os critérios de concessão passaram a ser todos objetivos, sem margem para interpretações. Bolsonaro alterou também alguns pontos menores como calibres permitidos, quantidade de munição permitida, validade da licença etc.
Na prática, o decreto se traduziu em um aumento de 25% no número de armas registradas, um resultado tímido se considerado todo o auê feito pela imprensa e a narrativa de que o Brasil se tornaria um grande filme de faroeste. Esse aumento não foi maior por um simples motivo: a falta das outras quatro condições, que exigem um esforço muito maior que apenas uma canetada. Exigem, no mínimo, capital político para negociação com o Legislativo e capacidade operacional de coordenação com as polícias, coisas que o governo simplesmente não possui. Continuemos.
Direito ao porte de arma: ter uma arma em casa é uma grande melhoria quando não se tem nada. No Brasil de hoje, criminosos invadem casas e comércios com pessoas dentro porque têm quase certeza de que não haverá resistência armada. Aliás, esse tipo de crime é impossível de ser evitado pela polícia. O policiamento ostensivo pode aumentar a segurança em locais públicos e abertos, por exemplo, mas jamais evitará uma invasão planejada a um local menos privilegiado em termos de tráfego ou visibilidade. Esse tipo de crime só é detido com armamento local. Grandes indústrias têm como pagar por segurança particular armada; pequenos negócios e pessoas comuns, não.
No entanto, os benefícios da posse de arma terminam aí. Para que criminosos também tenham medo de abordar as pessoas nas ruas e em seus veículos, para que mulheres não sejam estupradas em ruas desertas, para que idosos não sejam violentados, para que os mais fracos não pereçam nas mãos dos mais fortes, é necessário permitir o porte de arma. No Brasil, o porte é um privilégio da elite burocrática, de quem trabalha na área de segurança, e dos muito ricos, que podem contratar gente fortemente armada como guarda-costas. Embora Bolsonaro tenha facilitado a obtenção do porte para essas categorias, nada foi feito para garantir esse privilégio – que deveria ser um direito – ao cidadão comum qualificado.
Regramento policial: de nada adianta poder levar uma arma consigo se você não puder usá-la. Para que isso seja possível, o corpo policial deve operar sob um regramento e uma cultura que trate o cidadão de bem – sim, esse termo será usado aqui e tem um significado objetivo, que é aquela pessoa sem antecedentes e obediente à lei – como não criminoso. Em outras palavras, o policial que chegar a uma cena de crime em que um bandido tenha sido alvejado por uma vítima precisa ter diretrizes que o façam tratar cada um de acordo com o que é: bandido como bandido, vítima como vítima.
Para que criminosos também tenham medo de abordar as pessoas nas ruas e em seus veículos, é necessário permitir não só a posse, mas o porte de armas
Isso não significa, de forma alguma, liberar o assassinato de criminosos e estabelecer a justiça com as próprias mãos; significa pura e simplesmente reconhecer o direito individual de legítima defesa. Essa não é uma condição simples de ser criada, mas ainda é menos difícil que a condição seguinte, pelo simples fato de que o corpo policial tem, em geral, uma noção bem clara da importância da legítima defesa para o funcionamento ajustado de uma sociedade. O desafio, como já mencionei anteriormente, se dá muito mais na área de coordenação de esforços em um país continental como o Brasil, uma capacidade técnica que esse governo não tem demonstrado em nenhuma área.
Regramento jurídico: talvez a condição mais difícil de ser implementada, um regramento jurídico favorável à defesa própria do cidadão implica em mudanças profundas nos códigos de leis brasileiros. Mais do que isso, implica numa mudança de mentalidade de milhares de juízes. Se o cidadão tiver certeza de que acabará na cadeia porque fez uso de sua arma de fogo para defender sua família, é bem provável que ele nem sequer se dê ao trabalho de comprar uma. A situação penitenciária do Brasil é tão surreal e absurda que muita gente preferiria morrer a ter de passar anos em uma cela abarrotada de criminosos, uma realidade apocalíptica que infelizmente é quase regra em nossos presídios. Esse tipo de medo é real e se baseia em inúmeras decisões judiciais que têm condenado à prisão pessoas que nunca cometeram um crime somente por terem defendido suas vidas, suas famílias e seus negócios do ataque de criminosos de carreira.
Essa condição exige mais que um presidente da República para existir; faz-se necessário um estadista que costure as mudanças na lei e que plante as sementes nos lugares certos. E a indicação de Kassio Marques para o STF é indício de que Bolsonaro não tem nenhum plano de fazer algo a respeito. Afinal, o que dizer de um desembargador que, em 2017, negou porte de arma a um produtor rural do interior de Minas Gerais, que já havia sido vítima de bandidos que inclusive o sujeitaram a cárcere privado, só porque o tipo de arma que ele desejava era “pequeno e de fácil ocultação” e, por isso, “cobiçado pela criminalidade”?
Oferta de defesa advocatícia: última das cinco condições, mas não menos importante, a existência de uma rede de escritórios advocatícios que possam oferecer uma proteção judicial ao cidadão que tem ou porta uma arma é primordial para garantir o pleno direito de defesa. Aqui nos Estados Unidos, por exemplo, onde todas essas condições existem, um plano de seguro judicial custa menos de US$ 15 mensais, o valor de três Big Macs. Por essa quantia, você tem garantida a defesa em caso de ter de usar sua arma de fogo para se defender, mesmo que o processo todo venha a custar até US$ 2 milhões. Você tem também orientação jurídica a qualquer tempo, e treinamento para saber como responder ao interrogatório inevitável que virá com o uso de uma arma, principalmente se for em espaço público.
Por ser uma iniciativa de mercado, essa condição tende a ser a mais fácil de existir, uma vez que as outras estejam estabelecidas. Mas, diante da orientação ideológica predominante na Ordem dos Advogados do Brasil, não seria irreal prever grandes dificuldades para que escritórios brasileiros oferecessem esse tipo de seguro.
Resumindo, Jair Bolsonaro acaba de mostrar que não veio para mudar a realidade do cidadão brasileiro no tocante à sua defesa própria. O que ele fez por meio de decreto é apenas o primeiro passo de uma trajetória longa e difícil, e nessa trajetória ele não deu mais passo nenhum. Pelo contrário, ao indicar Kassio Nunes para o STF, ele garante quase 30 anos de presença de um juiz que já mostrou, ao longo de sua carreira, que não é favorável ao direito pleno de defesa do cidadão obediente à lei.
Bolsonaro, assim, trocou a promessa de lutar por esse direito pela garantia de que sua prole não seja importunada pela (in)justiça brasileira e de que seu mandato seja cumprido até o fim, possivelmente com uma reeleição em 2022. Ele nunca foi conservador, não age como cristão, e definitivamente não dá a mínima para o seu direito de defesa.
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais
Doações dos EUA para o Fundo Amazônia frustram expectativas e afetam política ambiental de Lula
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas