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Flavio Quintela

Flavio Quintela

100% errado

Hospital de Campanha no Recife muitos hospitais de campanha foram desativados no ano passado sem a menor explicação.
Hospital de campanha no Recife: muitos hospitais de campanha foram desativados no ano passado sem a menor explicação. (Foto: Fotos: Andréa Rêgo Barros/PCR/Fotos Públicas)

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É muito comum ouvir besteiras sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos. Coisas como “o sistema americano é desumano, pois não há saúde pública” e “os pobres não têm acesso a bons hospitais no país mais rico do mundo” já se tornaram chavão entre os que criticam o sistema americano sem nenhum conhecimento sobre o mesmo.

A realidade é um tanto diferente. As falhas existem e são grandes. Os planos de saúde com cobertura semelhante à que conhecemos no Brasil estão longe de ser acessíveis à parcela mais pobre da população. Assim, é comum que um cidadão decida pagar um plano mais barato e assumir um copay substancialmente alto. Para melhor entendimento, darei um exemplo: suponhamos um casal com dois filhos adolescentes. Se escolherem o plano mais barato, que lhes custará em torno de US$ 500 por mês, terão de desembolsar uma porcentagem de cada consulta e, em caso de emergência hospitalar, os primeiros US$ 10 mil terão de ser pagos pela família, sendo o restante coberto pelo plano. No entanto, se quiserem pagar US$ 1,3 mil por mês, não precisarão tirar nada do próprio bolso em caso de consultas ou emergências.

Sem plano de saúde, a coisa é ainda mais complicada. Qualquer visita à sala de emergência, por mais simples que seja, não sai por menos de US$ 1,5 mil. A última vez que passei por essa situação foi em fevereiro deste ano. Acometido de uma tosse que simplesmente não me deixava dormir e que já estava comigo havia mais de uma semana, me dirigi ao hospital mais próximo durante a madrugada. Uma radiografia, um comprimido e uma consulta depois, veio a conta: US$ 1.812,40.

Teria sido melhor não ter presidente nenhum a ter Bolsonaro no comando

Obviamente, nem tudo são problemas. Muito pelo contrário. Os hospitais – pelo menos os da Flórida Central – são excelentes, completamente equipados e com pouca espera por atendimento de emergência. E, ainda que o atendimento não seja barato, ninguém precisa passar o cartão de crédito antes de ser atendido. Isso significa que, mesmo que a pessoa venha a adquirir um problema sério de dívida financeira, ela terá o atendimento de que precisa para viver. Não sei você, mas eu prefiro viver com dívida a morrer quitado.

Um outro aspecto interessante é o das fundações religiosas que controlam diversas redes hospitalares. Minha conta de US$ 1.812,40 foi descontada em 80% quando eu disse que pagaria à vista. É o desconto padrão dessa rede, a Advent Health, que faz parte da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Se eu não tivesse os 20%, ainda teria a opção de pedir um auxílio baseado em minha renda familiar. Tenho amigos que precisaram desse auxílio e foram aprovados, não precisando pagar um centavo sequer de sua conta. A melhor parte disso: não é dinheiro público. Por ser uma instituição sem fins lucrativos, essa rede hospitalar tem um corpo de doadores financeiros dispostos a financiar o atendimento a pessoas de baixa renda. Outras redes espalhadas pelo país operam de forma semelhante.

Pois bem, depois dessa introdução, quero inserir esse assunto em um panorama mais amplo. Quero tentar passar a você uma ideia mais clara da realidade que vivemos aqui nos Estados Unidos, um dos poucos países com estrutura geográfica e populacional comparável à do Brasil. É muito fácil olhar para o Brasil em comparação com a Alemanha, por exemplo, e dizer que um fez muito melhor que o outro no tocante à pandemia. Acontece que uma Alemanha é muito mais comparável ao estado de São Paulo que ao Brasil como um todo. A coisa é bem diferente quando se tem dimensões continentais e não se é um regime ditatorial comunista. Por que a população americana, apesar da enorme quantidade de mortos em decorrência da Covid, encontra-se hoje em pleno processo de retomada de normalidade, enquanto os brasileiros mergulham mais fundo no caos? A resposta não é simples, como alguns gostariam. E meu desejo é buscar respostas verdadeiras, não apenas retóricas em favor ou contrárias a um determinado governante.

Dito isso, é minha opinião pessoal que o Brasil errou feio no seguinte:

Jair Bolsonaro é o pior gestor de crise da história recente de nosso país. Sua atuação na pandemia foi pior que o mais pessimista de seus críticos poderia esperar. Suas múltiplas declarações minimizando o poder de morte da Covid, sua falta total de empatia para com as vítimas, sua pecha de machão (como se o vírus se importasse com isso), sua insistência em receitar cloroquina para todo mundo, sua inaptidão para lidar com ministros da Saúde que ousaram pensar diferente dele etc. A lista é imensa e não tenho pretensão de descrevê-la à exaustão. Se preciso fosse resumir, diria apenas que teria sido melhor não ter presidente nenhum a ter Bolsonaro no comando.

Nosso sistema de saúde é uma piada. A quantidade de leitos de UTI é uma piada. A qualidade dos hospitais é uma piada. Os investimentos, tanto públicos quanto privados, na construção de novos hospitais e na modernização dos existentes são uma piada. Em tempo, todas essas piadas são de extremo mau gosto. A falta de planejamento, um dos maiores males das administrações públicas nacionais – seja em nível municipal, estadual ou federal –, cobrou seu pedágio na pandemia, e esse pedágio veio na forma de dezenas de milhares de mortos. Não estamos preparados para nenhum tipo de epidemia, muito menos para uma pandemia de proporções bíblicas. Aqui na Flórida, onde moro, se um bairro novo é criado, em menos de dois anos um novo hospital é construído na região. Tente se lembrar de quando foi construído o último hospital em sua cidade, e você entenderá o que é a falta total de planejamento em saúde. Para completar, os hospitais de campanha, que foram montados para desafogar o sistema, foram fechados. Você não precisa ser nenhum especialista em saúde pública para chegar à conclusão de que a decisão de fechar os hospitais antes do fim da pandemia foi idiota, de uma incompetência monstruosa. Sim, Jair é um péssimo presidente, porém Doria é um péssimo governador.

Ainda que houvesse novos hospitais prontos a serem inaugurados, não há mão de obra. Não há incentivo de nenhum tipo à formação de enfermeiros e intensivistas. Somente na Flórida, estima-se que haja uma falta de 3 mil enfermeiras a cada ano. Para tentar diminuir esse gap, novos cursos de Enfermagem são abertos todos os anos, as faculdades existentes abrem novos campi em outras regiões, e o sistema de imigração garante um tratamento diferenciado a estrangeiros que tenham formação comprovada e acreditada na área. Sabe o que foi feito no Brasil nos últimos dez anos para mitigar essa situação? Nada. Zero. Dá para construir um hospital de última geração em menos de um ano, mas não é possível formar um corpo profissional tão rapidamente. Se nossos gestores públicos não começarem a pensar nisso agora, a próxima pandemia será pior.

Bolsonaro brincou com o tema da vacina. Para mim, esse foi o maior de todos os seus erros. Foi tão grande que mereceu um parágrafo à parte. Não temos vacina. Ponto. O que temos foi por insistência de João Doria, que, num momento de relógio parado, acertou uma. Bolsonaro fez piada com a vacina, deu a entender que ela seria tão ou mais perigosa que o próprio vírus, disse que jamais compraria a vacina da Sinovac, desprezou os chamados dos outros fabricantes, não fez encomenda, não fez nada. Parafraseando meu falecido pai, defecou e sentou-se sobre o excremento. Eu não gosto de Jair Bolsonaro, nunca escondi isso, mas estaria pronto a reconhecer sua ação positiva caso os brasileiros estivessem em plena onda de vacinação. No entanto, o que eu vejo é gente como minha mãe, de 75 anos, ainda esperando para ser vacinada. Isso é um absurdo sem tamanho.

As medidas de isolamento tomadas por governadores e prefeitos foram ridículas. Cada um, a seu modo, fez o que poderia ter feito de pior. Em vez de limitarem a capacidade dos estabelecimentos, limitaram o horário de atendimento. Tem de se esforçar para ser mais idiota que isso, mas foi o que aconteceu. Resultado: as pessoas se aglomerando porque havia menos horas por dia para fazer o que precisava ser feito. Outra idiotice sem tamanho foram as limitações de atividades ao ar livre. Num país em que grande parte da população vive espremida em moradias de 60 metros quadrados ou menos, impedir que as pessoas saiam de casa e respirem um pouco de ar puro em parques e espaços abertos só fez aumentar o desejo de mandar tudo às favas. Afinal, quando se vive em um barraco onde o espirro do vizinho praticamente atravessa as paredes, quem realmente se importa em obedecer regras feitas por políticos que vivem em palácios públicos e que têm acesso exclusivo ao melhor que a medicina nacional pode oferecer? Sim, você acertou. Ninguém.

As medidas de isolamento tomadas por governadores e prefeitos foram ridículas. Cada um, a seu modo, fez o que poderia ter feito de pior

O suporte do Estado à economia foi pífio. Aqui nos Estados Unidos, pude manter meus funcionários recebendo salário graças ao Payroll Protection Program (PPP, Programa de Proteção à Folha de Pagamento). No meu caso, por ser microempresa, o empréstimo foi completamente perdoado na semana passada. O mesmo aconteceu com micro e pequenos empresários por todo o país. Fora o PPP, houve outros programas de agências federais, estaduais e até em nível de condado. Aqui no condado onde moro, por exemplo, empresários individuais puderam emprestar até US$ 10 mil para fazer a transição pelos meses em que precisaram fechar ou manter as atividades muito abaixo da média. A agência federal de pequenos negócios, a SBA, também ofereceu o programa de auxílio durante desastres – o mesmo que é oferecido quando há um furacão ou um terremoto – com juros de 2% ao ano, 30 anos para pagar e um ano inteiro de carência. Onde estão as linhas de crédito para os empresários brasileiros? Se você souber, me conte.

Enfim, o texto ficou enorme, porque não dava para falar pouco sobre esse assunto. Enquanto nos recuperamos do baque de 2020 aqui no Hemisfério Norte, batendo recordes de venda já no comparativo com 2019, meus amigos e parentes passam pelo caos no Brasil. Tenho falado com muita gente, de todos os espectros políticos, e não achei alguém que esteja minimamente animado. As palavras usadas são “preocupação”, “caos”, “incerteza”, “medo”. Infelizmente, a constatação é triste demais. O Brasil fez tudo errado. Tudo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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