A data: vigésimo-sexto dia do mês de maio de dois mil e dezenove.
O local: Avenida Paulista, São Paulo, capital.
O veículo: carro de som.
Ao microfone: deputada federal Carla Zambelli (PSL).
A transcrição:
Deputada Zambelli: “Bolsonaro, a gente tá aqui na Paulista, 26 de maio, e o pessoal da Paulista tem um recado pra você!”
Multidão, acompanhando a deputada em coro: "Bolsonaro, eu te amo! Bolsonaro, eu te amo! Bolsonaro, eu te amo! Mito! Mito! Mito!”
Deputada Zambelli: “Bolsonaro, o povo brasileiro te ama!”
Aproveitei um pouco do feriado que tivemos aqui nos Estados Unidos, 27 de maio, para ler diversos textos e ver alguns vídeos sobre as manifestações que ocorreram no domingo, em todo o Brasil. Abundam vídeos feitos tanto por participantes como por organizadores, abundam tuítes e posts de Facebook, abundam análises políticas em blogs, vlogs, colunas, reportagens, artigos de opinião etc. E, nessa abundância de narrativas, descrições e imagens, destaca-se o vídeo da deputada Carla Zambelli.
É óbvio que esse vídeo não representa de forma alguma o todo das manifestações. Seria desonesto negar o lado virtuoso desse evento: ver parcela considerável do povo nas ruas se manifestando a favor de um tema espinhoso e difícil como a reforma da Previdência. Sinceramente, é a primeira vez que vejo algo assim acontecer. Também seria desonesto esperar que as manifestações fossem homogêneas, que as pessoas se ativessem a defender uma única pauta. Isso nunca aconteceu e nunca acontecerá, justamente pelo caráter popular desses eventos, onde grupos diversos se unem em torno de algumas pautas centrais ao mesmo tempo em que se aproveitam da situação para levar suas mensagens específicas. Por causa disso, por exemplo, é que sempre se viam grupelhos em favor da intervenção militar durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Tudo isso levado em conta, o vídeo da deputada continua sendo um destaque muito negativo. Principalmente porque ela não representa um grupelho: Carla Zambelli Salgado é deputada federal pelo estado de São Paulo, eleita com 76.306 votos pelo PSL, com mandato até 31 de janeiro de 2023. A campanha da deputada focou o combate à corrupção por meio de três pilares: menos Estado, mais justiça e educação de verdade. Ou Carla Zambelli não pretende se pautar pelo que disse quando em campanha, ou acaba de inventar mais uma jabuticaba: defender menos Estado ao mesmo tempo em que incita o povo a declarar amor ao presidente da República. Pior que isso, a deputada se coloca numa posição de inferioridade, como se o Legislativo fosse menos que o Executivo, passando a vergonha suprema de puxar saco publicamente. E, antes que alguém venha dizer “mas ela é do partido do presidente, precisa mostrar apoio”, há uma diferença abissal entre apoiar e sair cantando amor em carro de som.
Mas, como disse anteriormente, abundam as análises sobre essas manifestações, e não pretendo entrar em outros méritos aqui. O que me fez interromper a sequência de artigos sobre empreendedorismo na América para falar de política brasileira foi o impacto desse vídeo. Ao ver a deputada gritando populismo barato, com sorriso no rosto, fiquei pensando se em algum momento na história das democracias modernas que tanto admiramos – Inglaterra, Estados Unidos, Noruega, Dinamarca, Canadá, Austrália, Suíça, Holanda e outras – se viu algo assim. A resposta é: não. Esse tipo de conclamação está muito mais para Argentina, Venezuela e Bolívia, aquele trio de quem tanto falamos mal porque sempre fez parte da patota petista. Assim, ao mesmo tempo em que a grande maioria das pessoas está de parabéns por lutar em prol de pautas corretas e necessárias, a deputada e todos que declamaram amor a Jair Bolsonaro com ela naquele momento comprovam que há, sim, um forte componente messiânico e populista no bolsonarismo, e que ele é suficientemente notável para gerar preocupação.
Para terminar, deixo uma sugestão à deputada Zambelli: registre mudança de nome incluindo “Bolsonaro", semelhante ao que fez Gleisi Hoffmann no passado recente. Gleisi carrega consigo a vergonha insuperável de ter incluído o nome de um criminoso condenado no seu, mas o “babaovismo" que as duas exibem é bem semelhante. Se é para passar vergonha, que seja bem passada.
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