Quero usar a coluna desta semana para compartilhar uma experiência inesquecível que tive com minha família aqui nos Estados Unidos. Refiro-me à passagem do furacão Irma, que deixou um rastro de devastação no Caribe e na Flórida.
Nossa “saga” começou em 4 de setembro, feriado nacional aqui nos Estados Unidos (dia do trabalho), quando o governador da Flórida, Rick Scott, declarou estado de emergência por causa da aproximação do Irma e sua previsão de atingir o estado no fim daquela semana. Estávamos em casa, aproveitando o feriado para descansar, e resolvemos que sairíamos para comprar mantimentos somente no dia seguinte. Todo morador da Flórida sabe que, quando um furacão está previsto, alguns itens devem ser estocados imediatamente: água potável, comida não perecível, baterias, remédios e combustível.
No dia seguinte, terça-feira, saí cedo para comprar água. Chegando ao supermercado perto de minha casa, deparei-me com as gôndolas já vazias. O atendente me disse que outros carregamentos chegariam naquele dia e nos dias seguintes. Entendi naquele momento que, em virtude da grande destruição que os texanos haviam acabado de sofrer, o povo da Flórida seria duas vezes mais precavido que em outras ocorrências desse tipo. Já passei por outras ameaças de furacão aqui e as coisas costumam acabar dois dias antes. Nesse caso, estávamos a seis dias do impacto.
Os dias que se seguiram foram de intensa preparação. Por ser o Irma o maior furacão já registrado no Oceano Atlântico, as redes de televisão mostravam sua trajetória e as simulações de impacto futuro o tempo todo. É impressionante o quanto o assunto é constantemente martelado em todas as mídias, uma forma extremamente eficiente de manter as pessoas cientes da gravidade do negócio. O governador também se engajou na maior campanha de preparação que a Flórida já viu. Ele fez pronunciamentos constantes na televisão, viajou por todo o estado para promover os esforços preventivos, arrecadou todas as verbas possíveis dos fundos federais de combate a tragédias, e repetiu incansavelmente que as pessoas deveriam seguir as orientações de evacuação à risca, pois o objetivo era que nenhuma vida fosse perdida.
Conforme os dias foram se passando, o Irma começou a atingir as primeiras áreas habitadas em seu caminho. Devastou a ilha de St. Maarten com ventos de quase 300 km/h, deixou dois terços de Porto Rico sem energia elétrica e matou 27 pessoas em sua passagem pelo Caribe, dez delas em Cuba. Mesmo assim, e com o prognóstico de chegar a Miami como um furacão de categoria 4 (ventos de 250 km/h), o que vi foi um espetáculo de organização e civilidade. Entrei em várias filas – para comprar água, combustível, gás de cozinha e gelo – e não vi uma confusão sequer, ninguém furando, ninguém correndo desesperadamente com carrinhos de mercado. A administração do condado onde moro (Orange County) enviou caminhões de limpeza para desobstruir bueiros e escoadouros – dava para ver os funcionários colocando um tubo enorme no bueiro e sugando toda a sujeira que pudesse obstruir o fluxo da água das chuvas torrenciais que estavam previstas. Diversos pontos de distribuição de sacos de areia foram montados, tudo gratuito. Várias igrejas e supermercados disponibilizaram suas instalações para serem usadas como abrigos aos que necessitavam deixar suas residências, principalmente os moradores de trailers e casas de construção muito fraca. Os pedágios foram suspensos em todas as estradas do estado para minimizar o custo de viagem aos que precisavam sair (e continuam suspensos até hoje, para permitir a volta dessas pessoas). Uma linha de atendimento telefônico foi colocada à disposição da população, para que denunciassem qualquer empresário que aumentasse abusivamente os preços de artigos de primeira necessidade, como água, comida e gasolina, prática proibida por lei.
Três dias antes do impacto previsto nas ilhas Key, o governo emitiu alerta de evacuação para seus moradores, pois o furacão chegaria lá como categoria 4. A previsão era de um evento de altas proporções de devastação, e Rick Scott foi bem claro em um de seus pronunciamentos: “Não existe lugar seguro nas ilhas Key. Evacuem”. Ele estava certo: mais de 90% das casas foram danificadas ou destruídas nessa parte do estado. Levará semanas para que a energia elétrica seja restabelecida, e anos para que as coisas voltem totalmente ao normal. O mesmo alerta foi emitido para Miami e região no dia seguinte, e as estradas lotaram. O trajeto Miami-Orlando, que costuma levar três horas e meia, estava sendo feito em 10 horas. Milhões de pessoas rumaram ao norte para fugir da fúria do Irma, lotando todos os hotéis da região de Orlando e até mesmo de Atlanta, na Geórgia. Novamente, a civilidade reinou nas pistas. Não se viu motos andando pelos corredores e nem carros avançando pelos acostamentos. A polícia deslocou um contingente adicional de agentes para dar conta desse êxodo, e tudo correu de maneira ordeira.
Dois dias antes do impacto previsto em nossa região, fizemos os últimos preparativos. Instalei painéis de madeira nas janelas de minha casa, deixei as lanternas em local fácil, fiz bastante gelo e estoquei no freezer, guardei os documentos em local seguro e à prova d’água, comprei comida para os bichos e coloquei tudo o que estava no quintal de casa para dentro. Os postos continuavam com combustível disponível, e conseguimos até mesmo comprar mais um pouco de água. Apesar da proximidade do grande monstro marinho, as pessoas começaram a se preparar com tamanha antecedência que os últimos dias foram mais tranquilos do que eu esperava. Some-se a isso iniciativas como a do Walmart, que deslocou 1,6 mil caminhões carregados com água engarrafada de lugares tão longínquos como Utah, a mais de 3,5 mil quilômetros da Flórida.
No dia anterior, fomos ao mercado pela última vez, apenas para comprar itens frescos como frutas e verduras. Nenhum estabelecimento seria aberto até pelo menos dois dias depois da passagem do Irma; talvez mais. Passamos o domingo em casa, já debaixo de muita chuva, aguardando o momento da fúria, previsto para as 2 da madrugada da segunda-feira. Às 8 da noite do domingo, já com ventos de mais de 100 km/h, a energia acabou. Não conseguimos dormir direito, pois os ventos faziam muito barulho. A chuva era torrencial e a ventania, constante. Rajadas mais fortes passavam de vez em quando, e um minitornado chegou a destruir a cerca de alguns vizinhos, mas não dava para ver nada naqueles momentos, pois a escuridão reinava absoluta. Em um determinado momento, alguém na vizinhança ligou um gerador e acendeu uma luz ao longe. Foi quando conseguimos ter uma ideia da quantidade de chuva e da velocidade do vento que nos atingia. Foram momentos de tensão, ainda mais porque nosso filhinho passou mal, teve febre e tremores, e tivemos de ligar para o serviço de emergência. Em meio a um furacão, você simplesmente não pode pegar o carro e ir para o hospital. Graças a Deus ele melhorou e não foi preciso uma ambulância para nos atender.
Na manhã seguinte, um vento médio e constante ainda passava em nossa área. A chuva tinha cessado, mas o céu continuava completamente coberto de nuvens. Algumas árvores e galhos caídos, as cercas de três vizinhos derrubadas, e só. Nada de mais grave tinha nos acontecido. Não podíamos sair do condomínio, pois havia um toque de recolher em vigência. A polícia estava reforçando a obediência ao toque, pois muitas linhas de energia estavam rompidas e vivas, um risco potencial de morte a qualquer um que chegue perto. Muitas vias estavam interditadas por árvores e galhos caídos, um risco potencial de acidentes de trânsito. Enfim, ficamos em casa, ainda sem energia e sem previsão de quando ela voltaria. Meu vizinho saiu com uma motosserra pelo condomínio, ajudando todos que tiveram árvores parcialmente quebradas, cortando os galhos e troncos caídos para facilitar a remoção. As pessoas saíram nas ruas a pé para averiguar a extensão da destruição em nossa pequena comunidade. No meio da tarde, vendo que perderíamos toda a comida do freezer, levei tudo para a casa de um amigo que não estava sem energia. Algumas horas depois, nossas luzes acenderam e a vida voltou ao normal.
Nos dias que se seguiram, continuei presenciando coisas que nunca tinha visto no Brasil. As administradoras de cartão de crédito mandaram e-mails dizendo que não cobrariam nenhuma taxa, juros ou multa de atraso dos moradores de áreas afetadas pelo Irma, e que facilitariam o aumento de linha de crédito para quem precisasse fazer compras fora do normal, para reconstruir ou consertar o que havia sido danificado. Notícias que eu nem havia lido começaram a pipocar nas mídias sociais, como a da Budweiser, que parou a produção de cerveja em algumas fábricas para engarrafar água potável e mandá-la gratuitamente aos locais afetados pelos furacões Harvey e Irma; ou como a do dono de um restaurante no Tennessee que, ao encontrar um casal em necessidade – a bateria de carro tinha arriado e eles estavam fugindo do Irma para o norte –, não lhes cobrou a refeição e ainda deixou um bilhete e duas notas de US$ 100, para que eles comprassem uma bateria nova. A nota dizia que ele tinha um irmão que morava na Flórida e que sabia o quanto era difícil esse momento, e que se eles voltassem poderiam comer por conta da casa novamente.
Infelizmente, o governador não conseguiu cumprir sua meta de nenhuma vítima fatal. Seis pessoas morreram na Flórida durante a passagem do Irma. Mas, considerando que o estado tem 20 milhões de habitantes, foi uma vitória e tanto. O estado do Rio de Janeiro tem uma média diária de 16 mortes por causas violentas, e sua população não chega a 18 milhões. O monstro de 800 km de diâmetro e 200 km/h de velocidade encontrou em seu caminho a resiliência e o preparo de um povo que pôs em prática, da melhor maneira possível, o popular “é melhor prevenir que remediar”. Mesmo assim, o remediar já está em andamento. Diversos anúncios oferecendo empregos temporários para quem se disponha a trabalhar na região de Naples e nas ilhas Key apareceram nos últimos dias em grupos de Facebook e em aplicativos de recolocação profissional. Não faltará emprego para quem quiser.
Eu não poderia terminar este artigo sem trazer à memória um episódio terrível, de seis anos atrás. Em janeiro de 2011, 918 pessoas morreram na Região Serrana do Rio de Janeiro, vítimas de chuvas torrenciais e de uma política de zoneamento e urbanismo falida e assassina. Mesmo diante da maior tragédia natural do país, os políticos brasileiros optaram por roubar o dinheiro que iria para ajudar os necessitados, cobrando propina para aprovar contratos de reconstrução com as empreiteiras, tirando proveito do caráter emergencial e do montante das verbas federais. O detalhe é que o próprio governador do estado, Sérgio Cabral, comandava a quadrilha, segundo investigação recente da Polícia Federal.
Enquanto os Estados Unidos dão nova dimensão à prevenção de desastres, o Brasil dá nova dimensão à canalhice. Políticos como Cabral, Lula et caterva lamentam mais a queda de um pão com a manteiga virada para o chão que a morte de um brasileiro. A vida é um dos bens mais descartáveis de nossa pátria na atualidade. Enquanto isso for realidade, continuaremos assistindo ao êxodo que tem tornado a Flórida o estado mais brazuca da América. Como disse minha esposa, se enfrentássemos um furacão por mês ainda seria mais seguro que voltar a morar no Brasil.
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