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Flavio Quintela

Flavio Quintela

De canal em canal

(Foto: Matthew Maaskant/Free Images)

De volta à série sobre empreendedorismo nos Estados Unidos, quero falar um pouco sobre o mercado em que atuo, o odontológico, e mais especificamente sobre a endodontia, especialidade dedicada ao tratamento de canais. Será bem interessante fazer algumas comparações com o Brasil, país que tem alguns dos melhores profissionais do mundo nessa área.

No Brasil há 15,8 mil endodontistas em atividade. Considerando uma população de 210 milhões de habitantes e um PIB de US$ 1,9 trilhão, podemos calcular que há uma média de 13.291 habitantes por endodontista, e um PIB médio "disponível" a cada endodontista de US$ 120 milhões.

Nos Estados Unidos, são 4,5 mil endodontistas em atividade. Novamente, se pegarmos a população de 327 milhões de habitantes e o PIB de US$ 21 trilhões, os índices serão de 72.667 habitantes por profissional (5,5 vezes mais que o índice brasileiro) e um PIB médio “disponível" a cada endodontista: de US$ 4,7 bilhões (39 vezes mais que o índice brasileiro).

A comparação entre os índices dos dois países é um bom início para quem quiser compreender as grandes diferenças de ganho financeiro entre endodontistas brasileiros e americanos. Algumas clínicas de endodontia daqui chegam a faturar US$ 250 mil por mês, cifra que nem a nata da endodontia nacional sonha conseguir. Mesmo que conseguisse cobrar a exorbitância de R$ 3 mil por canal e tratasse oito canais por dia, um profissional brasileiro conseguiria faturar em torno de meio milhão de reais por mês. Um número invejável, mas ainda metade do que as clínicas mais bem-sucedidas da América apresentam.

Mas, além da quantidade de gente e dinheiro "disponíveis" a cada endodontista, o que mais poderia causar essa diferença? Duas coisas: estrutura e mentalidade de negócios. Esses dois fatores andam juntos, pois uma mentalidade voltada ao faturamento implica em um planejamento para que a clínica tenha capacidade de gerá-lo, ou seja, para que tenha a estrutura física e os recursos humanos para tal. Assim, é muitíssimo comum entrar em uma clínica de endodontia americana onde há apenas um especialista, pelo menos duas assistentes e três salas de atendimento. Tempo é dinheiro, e o tempo do especialista é o mais valioso de todos. Assim, com três salas e duas assistentes é possível ter os pacientes sempre prontos para ele.

Algum leitor familiar com a odontologia brasileira dirá que no Brasil também há clínicas assim. Sim, há; mas são a exceção, enquanto aqui são a regra. O motivo é simples: cada sala de atendimento precisa ter um equipo, um microscópio, um motor, um ultrassom etc., e tudo isso custa bastante dinheiro. Ocorre que, ao fim do ano fiscal, o especialista americano pode optar por comprar mais equipamentos a fim de reduzir o imposto sobre lucro e preparar seu negócio para receber mais pacientes no ano seguinte. Em vez de pagar ao Fisco, ele prefere investir; agindo assim, cria um ciclo virtuoso de movimentação econômica.

O especialista brasileiro, quando tem essa mentalidade de investir – digo isso porque uma das críticas mais comuns que ouço dos próprios dentistas brazucas é que muitos preferem trocar de carro a adicionar um microscópio à sua prática –, não têm o mesmo incentivo fiscal. Pelo contrário, ainda sofre com preços inflados pela carga tributária absurda que é imposta a produtos importados. Como se pode ver, este é um ciclo vicioso em que menos riqueza é gerada, e boa parte dela acaba nas mãos do governo.

Um outro fenômeno interessante nessa área é a quantidade de endodontistas estrangeiros – dezenas de brasileiros inclusos – que ocupam cargos em universidades americanas, atuando como professores e, em muitos casos, chefes de departamento. Pelo fato de a carreira clínica levar comumente a um sucesso financeiro considerável, não são muitos os profissionais americanos que aceitam se dedicar em tempo integral aos programas de especialização das universidades. A matemática é fácil: um professor recebe em torno de US$ 150 mil anuais de salário; um profissional atuando em clínica própria pode fazer três ou quatro vezes esse valor. Assim, é prática comum ter esses clínicos dando aulas apenas uma ou duas vezes por mês – prática essa que traz o conhecimento clínico e a bagagem de quem toca o próprio negócio aos alunos – e ter um corpo discente fixo formado por uma parcela considerável de estrangeiros, que na maioria das vezes podem dar aula, mas não têm licença para exercer a profissão clinicamente. Para o profissional brasileiro, por exemplo, um salário de professor pode ser atrativo o suficiente para fazê-lo desistir de clinicar no Brasil e fazer carreira no meio acadêmico americano. E é o que acontece com frequência.

Tudo o que falei sobre endodontistas se aplica a diversos outros grupos de profissionais, dentro e fora da odontologia. Aliás, dentro e fora do grande ramo da saúde. Dinheiro disponível, clientela numerosa, incentivo à aplicação de lucros em ampliação de capacidade, mentalidade voltada ao empreendedorismo, carga tributária decente, legislação trabalhista não onerosa e outros fatores são motores que, juntos, giram a economia americana muito mais rapidamente que a brasileira. E, se a falta de motores já não fosse problema suficiente, ainda temos excesso de freios. É a união do inútil ao desagradável.

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