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Flavio Quintela

Flavio Quintela

Debaixo de sete chaves

(Foto: bronzedigitals/Pixabay)

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Dois dias atrás eu li o tuíte de um grande amigo, que dizia “Em poucos anos o brasileiro saiu da total apatia em relação à política direto para a politização de todas as esferas da vida (e de todos os minutos do dia)”. Sem sombra de dúvida, um dos tuítes mais verdadeiros que já li nos últimos tempos.

A politização de tudo é um ladrão de alegrias. Ninguém pode ser feliz politizando tudo. Primeiramente porque a política, via de regra, não é fonte de virtude, especialmente no Brasil. Para nós, brasileiros, política costuma significar sujeira, decepção e imoralidade. Nosso sistema político é um criadouro de homens públicos maus. E, por ser o meio pelo qual a política se materializa, ele torna a nossa política em algo cruelmente corrupto.

Quem tem princípios morais sólidos, mas alimenta a alma com política tende a colher uma espécie de amargura melancólica constante, um sentimento de injustiça que não desaparece. E quem não tem tanta solidez assim nos princípios pode sofrer uma corrosão moral, mesmo que de forma lenta e gradual.

Politizar todos os aspectos da vida é caminho certo para a infelicidade. E perder amigos por causa de política (e de políticos) é uma das coisas mais estúpidas que um ser humano pode fazer

Junte-se a esse fenômeno da politização total uma pandemia mundial e um longo período de isolamento em que perdemos o contato com nossas pessoas queridas, e o resultado não é nada bom. Antes mesmo que o primeiro chinês fosse diagnosticado com o coronavírus, no Brasil as amizades se acabavam por discordâncias em relação ao governo. Há quem diga que não eram amizades verdadeiras se acabavam por algo tão mundano, mas isso não é verdade. Muita gente deixou que a politização invadisse os recônditos mais preciosos da alma e manchasse coisas bonitas como amizade, amor e fraternidade.

Mas, de volta à questão do isolamento, quão mais fácil é deixar que a posição política de alguém mexa no modo com que enxergamos essa pessoa quando tudo o que temos à nossa disposição são postagens em redes sociais. Em vez de enxergarmos um amigo querido, vemos apenas o recorte de suas opiniões políticas. Tudo de que gostamos naquela pessoa faz parte agora apenas de nossas memórias, enquanto novas memórias estão sendo construídas baseadas apenas no que ela pensa sobre o Bolsonaro, o Lula, o STF, o Congresso etc. Um ano e meio de pandemia depois, e o amigo se transformou em “aquele minion” ou em “aquele esquerdista”.

Assim, as consequências sociais do isolamento em que vivemos nesses meses todos se somam às outras sequelas terríveis da pandemia. A imprensa conta as mortes todos os dias; de vez em quando uma história sobre as falências e dificuldades econômicas dessa época aparece em algum jornal ou blog; mas ainda estou para ler um texto lamentando o crescimento da polarização política como decorrência de nosso isolamento. Talvez esse texto exista, talvez este seja o primeiro. O fato é que precisamos colocar em prática os remédios para esse mal.

Recentemente, recebi a visita de amigos queridos. Fazia quase dois anos que não nos víamos. Por acaso, dois anos em que eu me tornei cada vez mais crítico ao governo e eles, do lado oposto, cada vez mais críticos aos que criticam o governo. Em nenhum momento brigamos por meio de WhatsApp ou redes sociais, mas dava para sentir que havia uma tensão no ar, um desconforto por conta de nossas opiniões opostas. Bastaram quatro horas juntos para que tudo isso desaparecesse e todas as memórias gostosas de nossa amizade viessem à tona. Conseguimos até achar um lugar comum em algumas questões políticas, que acabaram sendo discutidas perto do final do encontro. Mas, acima de tudo, o que ficou daquela noite foi a alegria de ver nossos filhos brincando juntos, as histórias que contamos à mesa, os abraços e a fraternidade.

O encontro pessoal é um bálsamo para a amizade quebrada. É muito fácil interpretar uma linha escrita no celular de acordo com o que achamos que a pessoa quis dizer, e isso implica em um fenômeno demasiado ruim de nossa época: é muito fácil interpretar de forma errada o que alguém quis dizer numa linha de texto. Textos não têm expressões faciais, não têm entonação, não têm presença física nenhuma. Mesmo os famigerados áudios de WhatsApp não traduzem tudo o que uma pessoa tem a dizer para outra. Mas o olho no olho desvenda tudo e desarma todos.

Enfim, acho que a conclusão dessa reflexão já se mostra um tanto clara, mas não me custa deixá-la completamente explicitada. Politizar todos os aspectos da vida é caminho certo para a infelicidade. E perder amigos por causa de política (e de políticos) é uma das coisas mais estúpidas que um ser humano pode fazer. Resgate uma amizade com uma visita. Você não se arrependerá. Seu político favorito certamente cairá no ostracismo daqui a algum tempo, mas uma boa amizade dura a vida inteira. E, por mais que pareça algo de um passado longínquo, dê espaço ao contraditório. Ouvir gente com opiniões diferentes das nossas é um exercício de tolerância, pluralidade e inteligência. Ser amigo de alguém apesar das divergências é um exercício de amor. Afinal, amigo se guarda do lado esquerdo do peito, debaixo de sete chaves. Assim falava a canção.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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