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Diz-se do jovem que ele é impulsivo por natureza, que se apaixona por ideologias e causas sem estudá-las a fundo, e que age sem medir devidamente as consequências. Basicamente, tudo verdade.
Quando mais jovem, fui um defensor ferrenho do Estado mínimo. Para o Flavio jovem, não era concebível que o Estado se metesse em qualquer assunto que não se enquadrasse na estrutura de Lei e Ordem do país ou na gestão da força militar. Minhas respostas eram simples, rápidas e rasas. Educação? Dá-lhe voucher e abaixo a rede pública de ensino. Saúde? Chega de SUS, o mercado acabará se encarregando de resolver. Transporte? Privatiza tudo. Autoridade monetária? Taca fogo.
Com a idade vem a experiência – de fazer família, sustentar filhos, passar apertos, carregar nos ombros o peso de ser um adulto competente e produtivo – e, para os afortunados, a sabedoria. O ano de 2020 veio sobre nós, e todos os mantras ideológicos do liberalismo radical, do libertarianismo e do anarcocapitalismo mostraram-se apenas mantras incapazes de resolver os problemas mais básicos dos habitantes humanos deste planeta. Gostaria de contar um pouco do que passei como empresário, nos Estados Unidos, e de como o Estado foi capaz de me ajudar – e, com isso, ajudar a minha família, meus funcionários e suas famílias – a sobreviver.
Liberais radicais, libertários e anarcocapitalistas veriam hoje o colapso de um país se suas ideias tivessem norteado a resposta dos governos à pandemia e às suas consequências econômicas. Veriam uma quantidade inacreditável de falências e ainda mais mortes
Faltam menos de dez dias para o encerramento do ano. Devemos fechar 2020 com faturamento 30% inferior ao de 2019. A Covid-19 nos acertou em cheio. Não tão em cheio como o setor de turismo, por exemplo, mas ainda assim foi uma tremenda pancada. Para começar, a feira setorial mais importante de nosso mercado ocorreria em abril, no auge das incertezas da pandemia, e foi cancelada. A feira sozinha representa 25% de nosso faturamento anual. Além disso, tivemos uma redução de 90% nas vendas de março e abril. Lembro-me claramente da conversa indigesta que tive com minha esposa quando fechei os relatórios de março. Disse a ela: “Há uma chance considerável de termos uma redução de 50% a 60% em nossa renda mensal. Precisamos cortar absolutamente tudo o que não for essencial”. E assim foi. Preparamo-nos para o pior.
Duas semanas depois, luzes se acenderam no túnel. Primeiro, o auxílio emergencial do governo federal para todas as pessoas que se enquadravam nos critérios de renda do programa. Basicamente, um pagamento de US$ 1,2 mil por adulto e US$ 500 por criança para todos os americanos e residentes legais das classes média e baixa. O corte de renda foi alto – recebimento integral para renda familiar de até US$ 150 mil anuais – e garantiu um bom dinheiro na conta das pessoas logo no início da crise. Logo em seguida, o programa de proteção à folha de pagamento (PPP, Payroll Protection Plan) veio para suprir dois meses e meio de folha de pagamento de pequenos e médios empresários. Detalhe: o empréstimo poderia ser completamente perdoado se o dinheiro fosse usado para pagar apenas salários, aluguel e algumas outras poucas despesas.
Ao mesmo tempo em que o PPP era lançado e rapidamente implementado, outras linhas de auxílio emergencial foram abertas pelo Small Business Administration (SBA), um órgão federal de fomento aos pequenos negócios. Essas linhas são comuns em todo tipo de desastre ou calamidade. Em épocas de furacões, por exemplo, estados atingidos duramente recebem programas voltados para os empresários que perderam total ou parcialmente sua capacidade de operar. No caso da Covid-19, as linhas foram abertas para o país inteiro, sem exceções. O auxílio veio em forma de um empréstimo a ser pago em 30 anos, com 12 meses de carência e juros de 3,75% ao ano (juros simples). Assim como no PPP, o processo foi totalmente automatizado e conduzido pela internet, bastando para isso preencher os formulários eletrônicos devidos e enviar cópia dos documentos solicitados. Uma vez aprovado o empréstimo, o dinheiro era depositado em menos de uma semana.
O Flavio jovem, aquele que acreditava no Estado mínimo, veria hoje o colapso de um país se suas ideias tivessem norteado a resposta dos governos à pandemia e às suas consequências econômicas. Veria uma quantidade inacreditável de falências. Veria, talvez, a ruptura do tecido social. Felizmente, não são Flavios jovens que comandam as nações. Em uma hora de extrema crise e incerteza, o Estado americano fez a única coisa possível: jogou dinheiro do helicóptero, como diz um amigo meu. Os jovens liberais, libertários e/ou anarcocapitalistas dirão que o problema foi empurrado com a barriga, que a conta terá de ser paga um dia, que a dívida pública crescerá exponencialmente etc. O que não dirão, porque não conseguem ver, é que a alternativa era lidar com falência e mortes generalizadas agora. Sinceramente, entre empurrar com a barriga e morrer, prefiro empurrar com a barriga. É como o doente terminal que consegue mais alguns anos de sobrevida, na esperança de que a cura seja descoberta nesse ínterim.
Enfim, pelo menos para mim e para todas as pessoas que se beneficiam da minha atividade econômica – meus funcionários e suas famílias, nossa faxineira, a cabeleireira da minha esposa, o jardineiro e sua equipe, o dono do pet shop, a professora do Kumon, o quiroprata, o dentista, o dedetizador, o entregador da Amazon, o motorista de Uber Eats, os donos de restaurantes e muitos outros –, o ano não foi ideal, mas poderia ter sido muitíssimo pior. Devemos primeiramente a Deus e depois ao Estado (que tanto pisoteei no passado) esse privilégio de terminar 2020 em pé. Se ter Estado é preciso, que ao menos ele aja quando for imperativo agir. Mais imperativo que em 2020, talvez só no próximo século. Assim esperamos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos