Recentemente, eu estava revisando algumas solicitações de conexão no LinkedIn, quando me deparei com o perfil de um sujeito que se denominava “Evangelista de Qualidade Total”. De pronto, provavelmente por causa da minha formação cristã, aquilo me pareceu uma quase-heresia. Afinal de contas, o Evangelho é sagrado para nós, cristãos, e evangelista é quem o prega. O próprio dicionário Michaelis define o termo da seguinte forma:
evangelista
e·van·ge·lis·ta
adj m+f sm+f
1 REL Que ou aquele que é autor de um dos quatro livros do Evangelho (Mateus, Marcos, Lucas e João).
2 LITURG Que ou aquele que canta ou recita o Evangelho em cerimônias religiosas.
3 REL Que ou aquele que segue uma doutrina protestante.
Intrigado pelo termo, fiz algumas buscas no próprio LinkedIn e descobri que há evangelistas de muita coisa não religiosa. Fui mais a fundo na pesquisa e descobri que a primeira pessoa a usar esse termo num contexto secular foi Guy Takeo Kawasaki, um profissional norte-americano da área de marketing, responsável por nada menos que a popularização dos computadores Macintosh, da Apple. Em seu website, Kawasaki continua se denominando um evangelista, atualmente da empresa Canva.
A quase totalidade dos veículos jornalísticos da atualidade pratica uma coisa muito distante do jornalismo verdadeiro, aquele que informa com o grau mais alto possível de isenção ideológica
Mas, afinal, o que faz um evangelista? É bem simples. Ele catequiza executivos, líderes e outras pessoas-chave de uma organização na sua área de expertise. Quando atuando externamente, o evangelista tem um papel comercial, como se fosse uma espécie de guru que precede a venda. Algo do tipo “abrirei os vossos olhos e vereis como é importante comprar a nossa solução”.
Ainda que de forma não declarada, esse conceito já foi transportado para o jornalismo e para a vasta rede de influenciadores que povoa as mídias sociais e os portais de notícias deste mundo. O jornalista do século 21 guarda pouca semelhança com o do século 20, especialmente os que atuaram nas décadas de 1950 a 1980. A quase totalidade dos veículos jornalísticos da atualidade pratica uma coisa muito distante do jornalismo verdadeiro, aquele que informa com o grau mais alto possível de isenção ideológica. As regras de conduta do jornalismo moderno são o exato oposto disso, e consistem em informar apenas o que for de interesse pessoal-partidário do jornalista, mesmo que para isso seja necessário fazer recortes da realidade sem conexão com o contexto dos fatos ou omitir partes essenciais de uma narrativa para impedir que o leitor ou espectador apreenda uma representação minimamente verídica do que realmente aconteceu. Em outras palavras, os jornalistas da atualidade não passam de evangelistas ideológicos.
Da mesma forma, blogueiros, influenciadores e subcelebridades das mídias sociais acabam fazendo esse papel evangelístico com qualquer assunto pelo qual nutram algum interesse pessoal ou mesmo uma simpatia acima da média. O evangelista, nesse caso, repassará qualquer tipo de notícia que corrobore suas opiniões para tentar convencer o maior número de pessoas possível, mesmo que seja sobre algo absurdo como a planicidade do planeta Terra, o terrível complô mundial das vacinas, ou um dos milhares de “cogumelos do sol” que aparecem todos os dias em nossas linhas do tempo, prometendo solução miraculosa para algum problema que não tem solução fácil.
Há uma razão simples para o sentimento estranho que tive ao ver pela primeira vez a palavra “evangelista” num contexto fora do cristianismo, e somente os cristãos entenderão o que vou dizer de uma forma mais integral: só faz sentido ser evangelista de algo absolutamente verdadeiro. Ou seja, não existem evangelistas, apenas Evangelistas da Palavra de Deus. Só aquele que dedica a vida à divulgação da Verdade pode ser chamado de Evangelista.
Como quase tudo na modernidade, o evangelismo é uma corruptela do Evangelismo. Afinal, o evangelista secular assume que aquilo que ele considera importante é a verdade absoluta sobre o assunto. Daí sua dedicação quase missionária a convencer seus pares sobre a tal “verdade”, seja ela a pirâmide financeira do momento ou a teoria conspiratória mais recente. Nesse sentido, o evangelista é exatamente o oposto do Evangelista, pois ele afasta as pessoas da verdade. E isso se aplica também aos falsos Evangelistas, que pregam em nome de Deus algo que só existe em seus evangelhos pessoais.
Enfim, acho que a mensagem ficou clara. Temos evangelistas demais e Evangelistas de menos. E esse, para mim, é um dos grandes problemas da nossa era. Enquanto houver audiência para esse pessoal – e eu não enxergo uma escassez de audiência num horizonte visível –, haverá mais gente tentando a carreira e congestionando os ambientes virtuais com conselhos inúteis, opiniões sem pé nem cabeça, e conteúdo ruim em geral. Quando deixo minha mente vagar por essa distopia, geralmente acabo no mesmo desejo: Vem, meteoro.