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Filmosofia

Foto: Divulgação (Foto: )

Não escondo de ninguém minha fixação pelo filme Matrix. Sou daqueles fãs que já viram o filme mais de 30 vezes, que têm diversas falas decoradas na memória (e, para desespero de quem está por perto, as recitam junto com os atores), e que gostam de usar determinados trechos do filme para fazer filosofia barata na vida pessoal. E, nesse espírito, trago um momento da trama à memória, no qual Morpheus diz o seguinte: “Neo, cedo ou tarde você vai perceber, assim como eu, que há uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho”.

A minha geração iniciou a péssima tendência de se contentar em conhecer o caminho, e a geração seguinte – conhecida como geração Y ou do milênio – alçou essa tendência ao patamar de regra de vida. Infelizmente, conhecer o caminho não é suficiente.

Em meu tempo de faculdade de Engenharia, internet ainda era algo bem restrito. Por sermos alunos da Unicamp, tínhamos acesso a uma conta de e-mail, e só. Navegar, naquela época, era verbo quase que restrito aos amantes e entusiastas dos mares, e o único navegador de internet existente chamava-se Mosaic. Pesquisas, trabalhos, estudos e outras atividades intelectuais exigiam visitas constantes à biblioteca, nosso repositório-mor de conhecimento acadêmico. Pode parecer besteira, mas a sequência mesma de atos necessários para levar a cabo qualquer uma dessas atividades – levantar o traseiro, andar até a biblioteca, procurar um livro, folheá-lo em busca das informações, buscar outro livro, folhear esse também, repetir esse processo mais algumas vezes, escrever tudo no caderno, tirar xerox de algumas páginas, ir embora e sentar-se, já em casa, para compilar tudo – é um ótimo começo para quem quer trilhar o caminho em vez de apenas conhecê-lo.

Nos dias de hoje, temos o Google, que nos deixou preguiçosos. Há tanta coisa para se ver, tanta informação disponível, tantos petabytes ao alcance de nossos dedos, que viver uma vida inteira apenas conhecendo os caminhos tornou-se a opção de muita gente. E esse comportamento não se restringe apenas ao período da faculdade; longe disso. Arrumar uma namorada, por exemplo, era das empreitadas mais estressantes para um adolescente da minha geração. Principalmente para os tímidos, como eu era, o processo envolvia muito planejamento e uma dose cavalar de coragem, que nem sempre eram recompensados com o beijo da tão desejada moça. Hoje, a gama de aplicativos para promover o encontro de “gente compatível” é imensa, cobrindo todos os gostos, orientações e objetivos. Com o esforço fora da equação, o resultado é cada vez menos gente trilhando os caminhos; conhecê-los já basta.

Na vida profissional a coisa se repete, com resultados decepcionantes tanto para empregados como para patrões. O jovem da geração Y tem a vida toda planejada na cabeça. Já leu inúmeros artigos na internet sobre como se dar bem em sua carreira, como chegar ao sucesso em tempo recorde, como alcançar um cargo de chefia, como se destacar em meio aos colegas, como conseguir um trabalho que seja prazeroso o tempo todo, e a lista é praticamente infinita. São dez dicas aqui, sete maneiras ali, cinco casos acolá, e nenhum lastro real. Aliás, a experiência normal que muitos de nós já viveram – aquela em que o trabalho é cheio de coisas chatas e inevitáveis, a carreira dá um passo atrás para cada dois à frente, e fazer o que se gosta é privilégio de poucos – é assustadora para muitos jovens da geração Y. Por terem crescido com a certeza do sucesso, com a afirmação constante de que eram especiais e com a internet lhes dando todo o suporte de que acreditam precisar, eles não têm as ferramentas necessárias para trilhar caminhos. São ótimos leitores de mapas, mas péssimos navegadores.

Até na vida religiosa a coisa degringolou. A boa e velha Bíblia debaixo do braço está sendo substituída por versões do texto disponíveis no celular. Sem ter de folhear um livrão de quase 2 mil páginas, o sujeito não decora mais a sequência dos livros, não sabe onde ficam os versos, não medita e não descansa da carga constante de tecnologia, nem mesmo no momento mais íntimo de culto. Trilhar os caminhos da fé parece fora de moda nesta época em que líderes religiosos oferecem soluções simples demais para os desafios complicados da vida.

Enfim, não quero parecer um velho caduco reclamando da tecnologia, mesmo porque sou um heavy user. Quero somente cutucar o leitor, tentando incitar alguma reflexão sobre o assunto. Precisamos nos mover para além do conhecer; precisamos dar o primeiro passo no caminho, deixando a primeira pegada na trilha. Mesmo porque, se não deixarmos nossas pegadas, a próxima geração não terá onde buscar suas referências. E, por último, lembrar que informação é como moeda: quando não tem lastro, pouco vale.

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