Todo mundo tem um tio que adora contar piadas, o mais engraçadinho dos irmãos, sempre pronto a alegrar os encontros de família. O meu tio humorista, o Toninho, adora contar a piada do inferno brasileiro. É mais ou menos assim, numa versão adaptada ao vocabulário pertinente a esta coluna:
Um infeliz pecador morreu e foi parar na porta do Inferno. Lá, um capetinha auxiliar lhe fez a seguinte pergunta: “Queres ir para o inferno brasileiro ou para o americano?”
“Qual é a diferença?” “Existe um muro intransponível que separa os dois infernos. No inferno brasileiro, terás de comer uma lata de excremento por dia. No fim do dia, um diabo vem e te espeta no traseiro com um tridente em chamas, e então podes dormir. No dia seguinte, acontece tudo de novo.”
“Mas, e o americano?” “No americano, é tudo igual, exceto pela quantidade de excremento. Em vez de uma lata, comes apenas um pires.”
Em oito meses desde que as aulas voltaram na Flórida, tivemos apenas uma suspensão de aula por uma semana, pois o pai de um dos coleguinhas do meu filho testou positivo para Covid
O infeliz não pensou duas vezes e foi para o inferno americano. Chegando lá, reparou que estavam todos cabisbaixos e tristes. Enquanto isso, no outro lado do muro, ouvia-se um som de pagode e muitas gargalhadas. Não se contendo, subiu no muro e chamou alguém.
“Ei, como vocês conseguem festejar? Aqui o pessoal come um pires de excremento e vive triste, enquanto vocês comem uma lata e vivem dando risada!”
“Bom, é que aqui é o inferno brasileiro. Um dia falta lata, no outro falta excremento, às vezes o diabo bate o cartão e sai sem espetar ninguém… E a gente vai levando!”
Depois que João Doria incluiu as escolas na lista de serviços essenciais e prometeu o retorno presencial às aulas dentro de duas semanas, inúmeros professores se manifestaram a respeito nas redes sociais, a grande maioria em discordância.
Na Flórida, meu filho retornou às aulas presenciais em agosto de 2020. Ele usa máscara o tempo todo e a escola tem uma política rígida de controle de sintomas. Todos os dias, preenchemos um boletim através de um aplicativo, dizendo se ele está tossindo, se teve febre, se tem coriza, se reclamou de alguma dor no corpo etc. Durante o dia, as crianças lavam as mãos diversas vezes, e não há interação entre classes.
Dessa forma, em oito meses, tivemos apenas uma suspensão de aula por uma semana, pois o pai de um dos coleguinhas do Benjamin testou positivo para Covid. Em todo o restante do tempo ele teve aula normalmente, e em junho encerrará o ano letivo sem nenhum atraso no currículo. Nós, pais, pudemos retomar nossa rotina de trabalho que, com crianças em casa, fica bastante comprometida. No entanto, caso tivéssemos optado pelas aulas on-line, não haveria problema nenhum. Ele receberia um computador e poderia fazer tudo de casa.
Os professores paulistas têm motivo para se opor ao retorno presencial das aulas? Sim, é claro. Mas o motivo correto, aquele que realmente causa risco à saúde desses profissionais, não é a pandemia em si. O motivo é trabalharem em um lugar chamado Brasil. Como já disse em artigo recente, o Brasil não é o país do planejamento. A piada é bobinha, mas é bem verdadeira: sempre falta alguma coisa ou alguém. Todos acompanhamos atônitos a situação em Manaus, quando houve a falta de oxigênio nos hospitais da capital. Em outros lugares, faltaram seringas, faltaram medicamentos, faltaram leitos de UTI e faltou gente qualificada. Não seria no campo da educação que a falta de planejamento daria lugar à excelência.
Os professores paulistas enxergam o retorno às aulas como um bilhete para a UTI mais próxima (ou, mais realisticamente, para algum corredor cheio de macas). Eles sabem que não haverá um controle rigoroso do estado de saúde de cada aluno. Sabem que haverá alunos sem máscara em sala de aula e que, dependendo da localização da escola, nem sequer poderão obrigá-los, sob pena de correrem um risco de morte maior que o imposto pela pandemia. Pode parecer chocante a algumas pessoas, mas esses são os mesmos professores que não podem impedir que um aluno use o celular no meio da aula porque ele é protegido pelo chefe do tráfico local. Eles sabem também que os prédios não têm espaço para um distanciamento maior entre alunos, e que muitos virão para a aula já pré-empacotados no transporte público. Por saber disso tudo e de muito mais, eles têm medo.
Os professores paulistas têm motivo para se opor ao retorno presencial das aulas? Sim, é claro. Mas o motivo correto, aquele que realmente causa risco à saúde desses profissionais, não é a pandemia em si. O motivo é trabalharem em um lugar chamado Brasil
Não sou especialista no assunto, mas considero a abertura bem planejada de escolas algo compatível com o combate à pandemia. É o que tenho visto em minha região, onde um conjunto de medidas e iniciativas tornou o processo mais seguro e ajudou a recolocar as pessoas em seus empregos. As escolas precisam reabrir, as crianças precisam voltar às aulas. Não vejo como argumentar contra isso. Mas, como sempre, existem maneiras e maneiras de se implementar essa volta. Até o momento, o Brasil fez tudo errado nessa pandemia. A lógica diz que o retorno às aulas não será diferente, pelo menos na rede pública.
Tenho amigos com filhos em boas escolas particulares de São Paulo que me mostraram uma realidade muito parecida com a que temos aqui. Estruturas de controle em minigrupos de alunos que não interagem entre si, possibilitando um rastreamento eficiente em caso de contaminação, prevenindo um fechamento completo em caso de algum parente ou mesmo um aluno testar positivo para a Covid. Fazer um controle desses não é nenhum privilégio de mentes superiores. Pelo contrário, há receitas já testadas que podem ser implementadas em outros lugares. Essa, portanto, deveria ser a exigência dos professores para voltar a ensinar. Não é realista querer esperar o fim da pandemia, mas é totalmente realista exigir medidas que garantam a segurança de alunos, professores e funcionários.
Uma coisa é certa: ninguém estará seguro no inferno brasileiro. E, dessa vez, não vai ter festa.
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