Algo que tem me incomodado há tempos no governo Bolsonaro é o uso constante de João 8,32. O presidente e alguns ao seu redor parecem ter entendido que o versículo bíblico em questão pode ser usado para qualificar suas declarações, algo como um selo de veracidade com autenticação divina. Em minha opinião, é um uso errado da palavra de Deus, um desrespeito para com seu verdadeiro significado:
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”
Meu incômodo com esse uso vem justamente de minha fé. Sempre entendi essa passagem como algo divino, uma referência clara à Verdade encarnada, Jesus Cristo, que liberta o homem do pecado. Como não sou teólogo, apesar de já ter cursado seminário durante um tempo, resolvi pesquisar sobre o texto, e o resultado é o restante deste artigo.
Em seu aclamado comentário bíblico, Charles J. Ellicott diz o seguinte sobre João 8,32:
E conhecereis a verdade. — Na grande Oração Intercessória de João 17, Jesus ora por Seus discípulos: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade” (João 17,17). Na resposta à pergunta de Tomé, Ele declara: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (João 14,6). É este pensamento que está presente na conexão entre a continuidade de Sua palavra e o conhecimento da verdade. Esses judeus alegavam conhecer a verdade e se achavam seus expositores oficiais. Eles ainda tinham de aprender que a verdade não é apenas um sistema, mas também um poder; não somente algo a ser dito ou escrito, mas também para ser sentido e vivido. Se permanecessem em Sua palavra, seriam Seus discípulos; ao viver a vida da verdade, ganhariam percepção da verdade. “Seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Efésios 4,15).
E a verdade vos libertará. — Aqui, como em João 17,17, verdade e santidade são usados como correlativos. A luz da verdade dissipa a escuridão na qual se estabelece a fortaleza do mal. O pecado é o cativeiro dos poderes da alma, e esse cativeiro é voluntário porque a alma não enxerga seu mal assustador. Quando percebe a verdade, recebe um poder que a tira de seu estupor e a fortalece para quebrar os grilhões que a têm mantido cativa. Ser livre do domínio romano era uma das esperanças nacionais para com o advento do Messias. Há, porém, uma liberdade de um inimigo muito mais esmagador que as legiões de Roma.
A verdade à qual se refere Jesus é infinitamente superior a qualquer discurso humano
Em outro famoso comentário bíblico, o de Johann Albrecht Bengel, podemos ler o seguinte:
Τὴν ἀλήθειαν (a verdade), no tocante a Mim, como enviado pelo Pai; no tocante a vocês, como Meus discípulos verdadeiros.
ἡ ἀλήθεια (A verdade), sendo conhecida, a Meu respeito; e Eu Mesmo. Pois o Filho liberta (João 8,36). Compare com João 1,12: “deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, ou seja, aos que creem no seu Nome” e Ele é a verdade, como diz João 14,6: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”
ἐλευθερώσει (vos libertará) Como sempre, em acordo com Sua sabedoria infinita, Jesus falou especificamente daquilo que atacaria os preconceitos do homem, trazendo-lhe benefício. A Liberdade é a isenção dos filhos de Deus de todo o controle adverso, a saber, do pecado e sua escravidão; João 8,34 diz “todo aquele que pratica o pecado é escravo do pecado”; e João 8,51 diz "se alguém obedecer a minha Palavra, jamais experimentará a morte.”
O teólogo inglês Matthew Poole, que viveu no século 17, comenta o mesmo trecho da seguinte forma:
“E conhecereis a verdade” – ou seja, conhecerão mais clara e completamente a verdade; pela qual poderão tanto compreender Cristo, que se definiu como o Caminho, a Verdade e a Vida, quanto as proposições que Cristo revelou. Deve haver algum conhecimento da verdade na alma antes que creia; pois como crerão (disse o apóstolo) nEle se dEle não tiverem ouvido? Mas um conhecimento mais amplo e claro da verdade se consegue aos poucos, pelos que assim o buscam, caminhando perto de Deus.
“E a verdade vos libertará” – de acordo com João 8,36, quando fala em verdade Ele se refere a Si mesmo; diz também que o Filho liberta. De fato, ainda que o conhecimento da proposição da verdade dê aos homens alguma liberdade da escravidão da ignorância e de algumas concupiscências, é apenas o conhecimento salvador da pessoa de Cristo que leva o homem à liberdade perfeita tanto da lei como do domínio do pecado e da corrupção.
Ao usar João 8,32 todo o tempo, o tempo todo, Bolsonaro diminui a força divina do texto bíblico
Finalizando com as citações, a Bíblia de Cambridge define os termos “a verdade” e “vos libertará” da seguinte forma:
“a verdade” – tanto a doutrina divina (João 17,17) como Cristo mesmo (João 14,6), cujo serviço é a perfeita liberdade.
“vos libertará” – livres da escravidão moral do pecado. Compare com o que diziam os estóicos: “O homem sábio, em si, é livre”.
Assim, depois de ler todos esses comentários sobre esta breve, porém maravilhosa passagem bíblica, cheguei à conclusão de que meu incômodo é fundamentado. A verdade à qual se refere Jesus é tão infinitamente superior a qualquer discurso humano que o uso do versículo para indicar algo como “estamos falando a verdade, e por isso estamos libertando vocês” é de uma prepotência sem limites. De modo semelhante, a libertação do pecado é um evento tão impactante na vida de um homem ou mulher que equipará-lo a qualquer libertação da ignorância sobre fatos mundanos só faz reforçar esse desrespeito com a sacralidade das escrituras.
Resumindo, ao usar João 8,32 todo o tempo, o tempo todo, Bolsonaro diminui a força divina do texto bíblico, tanto pelo desrespeito com sua sacralidade como pelo uso político de uma Verdade – essa, sim, libertadora – descortinada ao mundo mais de 2 mil anos atrás.