Diversos boatos de que Justin Trudeau é filho bastardo de Fidel Castro se espalharam pelas redes sociais nas últimas duas semanas. Ainda que as “provas” apresentadas para corroborar o boato sejam discutíveis, a alegação tem tudo para ser verdadeira se tomarmos a última resolução do primeiro-ministro canadense como base. No último dia 14, Trudeau invocou poderes emergenciais para combater os protestos de caminhoneiros na região de Ottawa.
A ação de Trudeau, ao contrário do que o próprio disse em seu pronunciamento a respeito, não tem nada de proporcional, não contribui para o fortalecimento das instituições e não tem respaldo nos princípios de liberdade que permeiam as democracias ocidentais. Ele invocou uma lei emergencial que dá plenos poderes ao Estado de dissipar qualquer tipo de assembleia pública, de controlar o ir e vir das pessoas e, ultrapassando todos os limites do absurdo, de confiscar dinheiro diretamente da conta de qualquer pessoa envolvida nos protestos sem necessidade de ordem judicial. Resumindo, um passe-ditador.
Enquanto os governos das províncias buscavam soluções reais para o problema, Justin Trudeau planejava sua pequena aventura autoritária sem precedentes na história canadense
A justificativa dada pelo governo para tal medida é descabida e mentirosa. Os protestos não estão violentos e muitas províncias já anunciaram mudanças nas regras de obrigatoriedade de vacinação, a principal razão dos protestos. Ou seja, o movimento já entrou na fase de finalização, e isso se deu apesar de Trudeau e não por causa dele. Enquanto os governos das províncias buscavam soluções reais para o problema, o governo federal planejava sua pequena aventura autoritária sem precedentes na história canadense.
Voltando ao pronunciamento de Trudeau, os três pontos que ele mencionou merecem uma análise à parte. Primeiramente, quando diz que a invocação da Lei Emergencial é proporcional à ameaça, ele está mentindo. De acordo com a Constituição canadense, a Lei Emergencial só pode ser usada no caso de “ameaças sérias à soberania, segurança e integridade territorial do Canadá” e que ao mesmo tempo “não possam ser remediadas com nenhuma outra lei do Canadá”. Está bem longe de ser o caso. Os protestos não se encaixam nem na primeira e nem na segunda parte da descrição. Os caminhoneiros não estão pedindo a divisão do país em dois, não estão pedindo a renúncia de Trudeau e o fechamento do parlamento, e não são uma ameaça à segurança nacional. E o Canadá tem todas as leis necessárias para lidar com esse movimento.
Quanto ao fortalecimento das instituições, nada poderia ser mais falso. Em primeiro lugar, todas as vezes em que um governo eleito democraticamente alega a necessidade de um regime de exceção, em que seus poderes são severamente amplificados, a confiança das pessoas nesse governo é imediatamente debilitada. Ninguém gosta de ver o outro torcendo as regras para seu próprio benefício. E é exatamente o que está acontecendo nesse momento. A decisão do governo foi fortemente criticada por associações civis, por professores renomados de universidades canadenses e até mesmo por alguns governadores de províncias. A investida autoritária do governo federal também atinge o Judiciário, pois remove a necessidade de ordem judicial para o congelamento de contas bancárias e outras medidas extremas.
Por último, Trudeau afirma que está garantindo a liberdade das outras pessoas ao limitar a liberdade de os caminhoneiros protestarem. Diz que eles estão infringindo leis. Ora, é da natureza da democracia que as pessoas protestem contra leis injustas. A obrigatoriedade de vacinação impediu muito mais gente de trabalhar do que a paralisação dos caminhoneiros. É óbvio que a paralisação afeta a vida de outras pessoas. Não fosse assim, não haveria sentido em paralisar, pois ninguém sentiria efeito algum. Porém, quando em contraste com toda a estrutura logística do país, não se pode dizer que o protesto dos caminhoneiros está sendo catastrófico para a economia. Novamente, seus efeitos são muito mais brandos que aqueles relativos à paralisação compulsória de atividades econômicas durante os lockdowns da pandemia.
Cabe ao povo canadense responder com firmeza a essa afronta do primeiro-ministro, aquele que diz não ser filho de Castro. A história está repleta de casos em que o uso de medidas emergenciais terminou em ditadura real e prolongada, alguns deles sem volta. A estrutura de tripartição do poder e o sistema de freios e contrapesos são o que mantém a saúde das democracias representativas. A invocação de poderes emergenciais é como um câncer que, uma vez instalado e não tratado, pode se espalhar por todo o corpo. E o resultado de algo assim é certamente a morte. Que o Canadá não se torne a nova Cuba, mesmo que Trudeau seja um Castro Júnior.
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