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Nem toda negociação é negociata

Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados (Foto: )

Qualquer brasileiro que acompanhe política pelas redes sociais sabe que o assunto dos últimos dias é um só: o que é negociação ou articulação política e se Jair Bolsonaro deve ou não usar esse expediente.

De um lado, críticos do governo têm insistido que o presidente da República, após ter levado o projeto de reforma da Previdência ao Congresso, deu de ombros e deixou a batata quente nas mãos dos deputados e do presidente da casa, Rodrigo Maia. Eu me incluo nesse grupo. Do outro lado, defensores do governo lançaram a narrativa de que não existe negociação ou articulação política que não seja ilegal ou prejudicial à nação.

Mas, afinal, quem está certo? O Executivo deve negociar com o Legislativo? Se sim, quais devem ser os termos dessa negociação? O que pode ser dado como contrapartida? O orçamento da União tem provisões para acomodar esse tipo de atividade política? É possível haver negociação e articulação sem a troca de favores ou valores ilícitos? Articulação política é sinônimo de corrupção? Todas essas perguntas são pertinentes e devem ser respondidas se queremos chegar o mais perto possível da verdade, que no momento passa longe tanto dos críticos mais radicais quanto dos influenciadores chapa-branca.

Comecemos com a primeira pergunta: o Poder Executivo deve negociar com o Poder Legislativo? Ora, desde que se entenda que negociação não implica necessariamente em troca de favores ou ilicitudes, é óbvio que os dois poderes precisam negociar. Na tripartição de poderes, o intuito é justamente criar um equilíbrio para que as chances de uma tomada autoritária sejam diminuídas ao máximo. Nesse sentido, o Executivo é o poder que exige mais regulação, dado que repousa nas mãos de um único homem, o presidente da República. Embora esse homem tenha sido teoricamente escolhido por mais de 50% da população que votou, são os deputados que representam parcelas menores e mais homogêneas do povo. Ainda que o nosso método de eleição legislativa seja dos piores do mundo – o ideal é que tivéssemos o voto distrital puro ou misto –, é inegável que os deputados são os agentes políticos com a conexão mais próxima à vida diária dos eleitores. Dito isso, é inconcebível que o presidente da República proponha leis e se esquive de discuti-las com o parlamento que as aprovará ou não. Discutir é negociar. Ao analisar um projeto de reforma como o da Previdência, um deputado que tenha sido eleito por suas posições em prol dos militares terá opiniões completamente diferentes de outro que tenha sido eleito por suas posições em prol de uma agenda econômica liberal e de Estado mínimo. Cada um deles tem de prestar contas de sua atuação aos seus eleitores, para garantir que os interesses deles sejam levados em conta quando da formulação de leis. Se o presidente abrir mão de discutir o conteúdo da lei que propõe com os deputados que a aprovarão ou não, estará abrindo mão do protagonismo na condução desse processo.

Uma vez estabelecido o processo de conversas, discussões e negociações, quais são as contrapartidas que podem ser utilizadas? Uma das principais, legalmente estabelecida no orçamento da União, são as emendas parlamentares. Pessoalmente, considero as emendas uma das poucas coisas úteis de nosso sistema político. É a oportunidade que um deputado tem de levar algum investimento com fundos federais para sua região de atuação, beneficiando a vida da população local. Obviamente, como qualquer outro dinheiro público, o uso de verbas de emendas deve ser fiscalizado e auditado com o maior rigor possível. E onde entra o presidente da República nisso tudo? É o Poder Executivo que estabelece o orçamento dessas emendas para o ano seguinte e também como pretende aplicar as verbas. E é justamente nesse ponto que há amparo legal para negociação lícita de valores monetários entre os dois poderes.

Assim, estabelecemos que há pelo menos duas frentes de negociação absolutamente lícitas e benéficas para a população, que são as discussões de teor com base nos interesses de determinados setores e grupos etários, étnicos, econômicos ou geográficos, e os compromissos de contrapartida com base na alocação de recursos através de emendas parlamentares. Essas são as frentes que estão sendo solenemente ignoradas por aqueles que defendem a posição de inação de Jair Bolsonaro e que tentam colar a mentira de que articulação política é sinônimo de corrupção. É claro que não podemos virar as costas para nossa história repleta de gente da pior espécie ocupando os mais altos cargos públicos. Como brasileiros que somos, temos o dever de trazer sempre à memória o Mensalão, maior esquema de compra de votos parlamentares desde que o Brasil existe; e o Petrolão, maior esquema de desvio de dinheiro público da história do mundo. Esses e outros escândalos são exemplos muito fortes do tipo de negociação e articulação que não são aceitáveis e que só corroem o tecido da democracia. Ainda no quadrante das práticas ilícitas, mas com mais chances de ganhar um verniz de legalidade, estão as indicações para cargos públicos, distribuídos em troca de votos. Ainda que se possa argumentar que uma indicação técnica de alguém competente não traz nada além de benefícios para a administração pública, o mero fato de se conceder um voto em troca de uma indicação não condiz com as práticas republicanas e com os objetivos políticos saudáveis de um parlamento.

Com tudo isso em mente, fica bem fácil entender que não existe “velha política” e “nova política”. O que existe é “boa política” e “má política”. Jair Bolsonaro é o presidente da República e escolheu – corretamente, diga-se de passagem – a reforma da Previdência como uma de suas principais bandeiras. Essa reforma é tema de difícil digestão, de escasso apoio popular e de improvável consenso no parlamento, pelo simples fato de ser algo que removerá benefícios de muita gente e tornará a vida das pessoas mais difícil em prol do saneamento das contas do Estado. Quem disser que a maioria da população entende a importância disso – que as pessoas estão prontas para abrir mão de “direitos” para que o governo consiga pagar contas – está mentindo ou enganado. É nesse contexto que se faz extremamente necessário o empenho completo do homem número um do Executivo na negociação do teor do projeto, usando e “abusando” de sua equipe para atender às necessidades expostas pelas bancadas de parlamentares envolvidas na discussão, e negociando contrapartidas lícitas aos votos necessários à aprovação do projeto. Não estar disposto a isso é o mesmo que não estar disposto a governar. Jair Bolsonaro não precisa fazer negociatas para negociar, e ele sabe muito bem disso.

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