O nível de polarização em que vivemos atualmente é tamanho que todo e qualquer acontecimento com repercussão nas mídias tradicionais ou sociais provoca a criação imediata de manadas alucinadas prontas a defender seus pontos de vista sobre o tal ocorrido e a atacar-se mutuamente numa luta sem sentido em nome de uma razão inexistente. Não há diálogo e nem equilíbrio. Há somente tribalismo e ignorância.
O abandono de Simone Biles na final por equipes de ginástica artística é mais um desses acontecimentos. Assim que a ginasta esclareceu os motivos de sua desistência – a preservação de sua saúde mental –, as manadas começaram a vomitar opiniões e atacar seus “inimigos”. De um lado, valentões dizendo que Biles fez tudo errado, que foi egoísta, que foi fraca, que não tinha o direito de desistir e que destruiu os Jogos Olímpicos para a equipe norte-americana. Contra-atacando, defensoras da honra feminista puxaram de seu baralho todas as cartas antimasculinas, tachando os valentões de misóginos e machistas, e aplaudindo a atleta por sua desistência. Como sempre, todos falaram besteira. Movidos unicamente pelo desejo de massacrar seus oponentes intelectuais – se é que se pode classificar esse tipo de manifestação como algo intelectual –, perderam a chance de opinar com isenção e equilíbrio e de contribuir positivamente para o debate público.
As reações desnecessárias e exageradas transformaram uma simples desistência, um momento de insucesso, uma fraqueza humanamente justificável, em um embate bocó entre gente que não tem nada a ver com ginástica e nem com Simone Biles
Simone Biles, como qualquer ser humano em situação de forte estresse, tinha as opções de seguir em frente ou de desistir. Qualquer que fosse sua escolha, carregaria consigo suas consequências específicas. Tivesse ela optado por se manter na equipe, talvez tivesse sofrido um acidente em algum dos aparelhos. A única prova em que ela se apresentou na noite da desistência, o salto sobre cavalo, deixou bem claro que sua orientação espacial estava comprometida. Não sou especialista em ginástica artística e nem preciso ser para entender que uma ginasta com orientação espacial comprometida tem grandes chances de se machucar durante os saltos e piruetas múltiplas e complexas que fazem parte desse belo esporte. A desistência, portanto, pode ter evitado um mal muito maior que a medalha de prata em vez da de ouro para a equipe dos Estados Unidos.
Assumindo que essa hipótese seja correta, faz sentido massacrar a atleta ou, ao contrário, louvá-la pela desistência? Creio fortemente que não. Simone Biles merecia um simples “puxa, que pena para a equipe americana, que pena para o esporte, que ficará sem suas performances fantásticas nessa edição dos jogos”. Nada mais era necessário. E foram justamente as reações desnecessárias e exageradas que transformaram uma simples desistência, um momento de insucesso, uma fraqueza humanamente justificável, em um embate bocó entre gente que não tem nada a ver com o esporte e nem com a ginasta. Frases do tipo “ela foi fraca e o esporte é para os fortes!” e “cale a boca, lixo humano, ela foi forte porque só alguém forte admite a fraqueza!” deram o tom da discussão, e pouquíssimas vozes equilibradas se dispuseram a analisar o caso com franqueza e honestidade.
E não é um caso tão difícil assim. A competição olímpica é, por si mesma, superação. Participar dos jogos é superar uma miríade de competidores que ficaram para trás. Conquistar uma medalha é o ápice dessa participação. Atletas olímpicos não são crianças que se contentam com prêmios de participação. Eles buscam a glória. Assim, não faz o menor sentido exaltar a desistência de Simone Biles. Não é justo para com tantos outros atletas que engoliram a seco seus medos e seguiram em frente na sua busca por uma medalha. Mas também não faz sentido crucificar a moça. Se ela se sentiu sobrepujada pelo momento, pela pressão, talvez seja hora de dar mais atenção à saúde mental dos atletas. Michael Phelps, o maior atleta olímpico de toda a história, passou por momentos desesperadores de depressão, mesmo sendo quem é. Por conta dessa luta, cunhou a expressão “it’s okay to not be okay”, que pode ser adaptada como “não há problema em ter problema”.
Assim, é totalmente válido erguer uma nova bandeira – ou dar força a uma já erguida – por causa de um acontecimento desses. O que não é válido é transformar um momento de fraqueza em motivo de orgulho e louvor, como se a atleta tivesse feito mais ao desistir do que se tivesse se apresentado e obtido nota máxima em todos os aparelhos.
Tudo o que foi exposto nos parágrafos acima pode ser resumido em apenas uma palavra: equilíbrio. É na escassez dessa qualidade que prosperam a polarização e o extremismo. Essas ervas daninhas destroem o jardim de boas ideias que deveria ser o debate público sobre qualquer assunto, dominando a paisagem com sua feiura. Infelizmente, as redes sociais não têm se mostrado bons celeiros de jardineiros de ideias. Em breve, a se continuar nessa tendência, ervas daninhas são tudo o que teremos.