Podemos sair do WhatsApp, mas de que adianta se não desligarmos também a localização do celular, abandonarmos o Google e o Facebook e passarmos a usar um VPN para navegar?| Foto: Christian Wiediger/Unsplash
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Os anos 80 e 90 nos encheram de sonhos futurísticos maravilhosos. A humanidade do século seguinte seria muito mais humana: as máquinas e os computadores nos livrariam das mais diversas tarefas; com o tempo ganho, poderíamos viver mais intensamente com nossas famílias, conhecer mais lugares, estudar mais, desenvolver nosso interior; enfim, uma verdadeira revolução no estilo de vida do homem estava prestes a acontecer.

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Não podemos dizer que essas previsões não tenham de modo algum se concretizado. Muito pelo contrário. As máquinas e computadores, de fato, nos livraram de tarefas longas e árduas. Pergunte a um designer gráfico sobre como era criar a edição de uma revista antes e depois dos computadores, e você entenderá o que estou dizendo. Ou então, encontre um engenheiro que esteja hoje em seus 70 e lhe pergunte sobre como era trabalhar sem calculadoras científicas, tendo em mãos apenas uma régua de cálculo. Ou, ainda, consiga a façanha de encontrar um arquivista, da época em que absolutamente tudo era guardado em papel.

A eletrônica, os computadores e a internet realmente revolucionaram as áreas do conhecimento e da prática de trabalho humana. Igualmente, nosso estilo de vida foi mudado radicalmente com o encurtamento de todas as distâncias, seja por meio de viagens mais rápidas ou de métodos virtuais de reunião de pessoas. Duvido que a primeira pessoa que usou a palavra “globalização” tivesse uma ideia clara de quão globalizados estaríamos em tão pouco tempo. Infelizmente, uma das previsões ficou bem longe da realidade concretizada. Até sobrou tempo, mas ele foi engolido por demandas muito inferiores em termos de qualidade de vida e crescimento pessoal. Eu acho que você já tem uma ideia de sobre o quê estou falando.

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Sim, ganhamos tempo. Sim, nos livramos de tarefas. Não, não soubemos usar o tempo que sobrou

Lembre-se de um dia típico pré-pandemia, um dia em que você esteve em um shopping ou em qualquer lugar público com movimento razoável de pessoas. Qual cena lhe parece descrever com mais exatidão as suas memórias? Cena 1: de um lado, uma família passa conversando animadamente, o filho adolescente ao lado dos pais, olhando algumas vitrines e pedindo uma calça jeans de marca; do outro lado do corredor, famílias e casais estão sentados às mesas de um restaurante, todos conversando entre si, aproveitando a companhia uns dos outros. Cena 2: de um lado, uma família passa andando, o filho adolescente tropeçando no irmão mais novo porque estava olhando o celular; do outro lado do corredor, famílias e casais estão sentados às mesas de um restaurante, cada um com seu celular em mãos, conversas restritas apenas a dois casais apaixonados que parecem estar em seus primeiros encontros. Tenho certeza absoluta de que sua memória aponta para a cena 2.

Sim, ganhamos tempo. Sim, nos livramos de tarefas. Não, não soubemos usar o tempo que sobrou. Soterrados sob toneladas cibernéticas de bits que nos são servidos em forma de fotos, posts, tuítes, mensagens, respostas e curtidas, entregamos nossa sobra preciosa de tempo ao Facebook, ao YouTube, ao WhatsApp, ao Instagram, ao TikTok, ao Snapchat, ao Pinterest, ao Reddit e ao Twitter (a título de curiosidade, as plataformas foram listadas em ordem decrescente de número de usuários em janeiro de 2021). Como se não bastassem essas nove e mais algumas menos conhecidas, uma nova rede social juntou-se ao grupo recentemente, o Clubhouse, aquela dos áudios.

Pensando em tudo isso, e também com um pouco daquele documentário O Dilema das Redes na cabeça, entendi que o paralelo entre usuários de redes sociais e usuários de drogas é bastante adequado. No documentário, essa ideia é jogada sem nenhum desenvolvimento, somente com base na palavra “usuário”. No filme, um dos entrevistados diz que não é à toa que apenas na informática e no mercado de drogas o cliente é chamado de usuário. E para por aí. Eu quero ir mais longe. Quero mostrar que a coisa é mais profunda, que o paralelo tem outras facetas, começando com quem cria a droga.

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No caso da droga tradicional, seja ela cocaína, heroína, maconha ou metanfetamina, o dono do cartel é quem mais faz dinheiro. Ele põe seu time de plantadores, cozinheiros, processadores, embaladores, transportadores e seguranças para trabalhar a todo vapor, com o intuito de fornecer ao mercado o tão desejado produto. O cartel escoa a produção até os grandes centros de distribuição, de onde os traficantes locais assumirão a logística e farão contato com o usuário final.

Troque “droga tradicional” por “rede social”, “cartel” por “Big Tech”, “plantadores” por “designers”, “cozinheiros e processadores” por “programadores”, “transportadores” por “times de vendas”, e “seguranças” por “equipes de conformidade”, e você verá a mágica acontecer. As redes sociais são escoadas por vias infinitamente mais rápidas que as drogas tradicionais, e são entregues ao usuário final onde quer que ele esteja, por meio de um celular, computador, televisão ou relógio.

Aí você me pergunta: mas e o traficante local? Onde está no seu paralelo? Ora, ele existe, sim, e se chama influenciador. Ele tem um papel diferente, mas também recebe sua recompensa por suprir o vício dos usuários sob sua área de atuação. Creio que um exemplo pode esclarecer melhor a comparação. Tomemos o caso de um influenciador na área de política, alguém que tenha conquistado as centenas de milhares ou mesmo uma dezena de milhões de seguidores nas plataformas onde publica seu conteúdo. Essa pessoa age como aglomerador de usuários em torno de si, criando condições para um excelente ganho monetário por conta disso. Esse ganho vem em formas diversas, sendo as mais comuns o pagamento direto por visualizações, a venda casada de cursos on-line, a venda casada de produtos como livros e camisetas, o recebimento de vantagens não monetárias como presentes e serviços, e o acesso a cargos de alcance público (em bancadas de jornalismo, por exemplo) em virtude do alcance da pessoa e de sua capacidade de ecoar ideias. Como se pode ver, o traficante das redes sociais alimenta o vício de seus seguidores e é muito bem pago em troca.

E os usuários? No mundo das drogas palpáveis, fumáveis e cheiráveis, ele leva a pior o tempo todo. Em troca de um barato momentâneo, perde muito além de apenas dinheiro; perde emprego, família, casamento e muitas outras coisas importantíssimas da vida. No mundo das drogas virtuais, a coisa acaba sendo mais leve, mas as perdas são as mesmas. Você não precisa ser nenhum rei do networking e nem ter 2 mil amigos para conhecer alguém que tenha perdido o emprego ou o casamento por causa do vício em redes sociais. Na vida profissional, os sintomas incluem baixa produtividade, baixa capacidade de foco, excesso de falhas e erros em tarefas corriqueiras, desatenção etc. No casamento e na família os danos vêm pela falta de prioridades, pela diminuição da comunicação pessoal, pelo afastamento físico, pelo mau exemplo aos filhos, pelo desperdício de horas preciosas.

Alguém poderia dizer (e provavelmente alguém dirá na seção de comentários): e qual é o problema disso? São interações entre pessoas livres, sem intervenção do Estado, sem dinheiro público, e sem nenhum dos lados coagir o outro. A resposta é a mesma para redes sociais e para drogas, já que ambas as atividades se enquadram nos mesmos parâmetros da pergunta: é um problema moral, um problema ético. É sobre lucrar com a desgraça alheia. Dezenas de milhões de pessoas estão trocando o tempo que poderiam usar para se tornar melhores, para pensar em uma nova maneira de gerar renda, para ensinar seus filhos, para cumprir com suas obrigações inegociáveis do viver diário, por tempo de fofoca, tempo de ler e reler e reler a mesma notícia em plataformas diferentes, tempo de se sentir inferior ao olhar para a realidade teatricamente montada do vizinho, tempo de fazer o vizinho se sentir inferior ao ver a nossa realidade teatricamente montada. E cada centavo que elas deixam de ganhar, cada sentimento que deixam de expressar pessoalmente, cada segundo que deixam de viver com seus queridos, são creditados nas contas bancárias ou de PayPal dos influenciadores a quem seguem com devoção messiânica. E os influenciadores, por sua vez, ficam apenas com uma parcela do que os donos das plataformas fazem de lucro. E arrisco dizer que em menos de 1% das interações diárias algo genuinamente útil é gerado, algo que genuinamente transforme o mundo em um lugar um pouco melhor, ou pouco mais confortável ou um pouco mais desejável de se viver.

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No mundo das drogas palpáveis, fumáveis e cheiráveis, o usuário perde dinheiro, emprego, família, casamento. No mundo das drogas virtuais, a coisa acaba sendo mais leve, mas as perdas são as mesmas

Logo no primeiro dia em que recebi o convite para participar do tal Clubhouse, encontrei uma amiga que já estava acelerada lá dentro. Ela já tinha entrado em diversos clubes e tinha inclusive sido convidada para debater em um deles. Suas palavras para mim quando lhe perguntei se a nova rede era legal: “Olha, estou gostando muito! Tem muita gente legal falando sobre empreendedorismo, dando palestras em áudio, debatendo. Estou viciando. Mas tem um problema muito grande, que é você perder muito tempo, muito tempo mesmo ouvindo tudo que tem de interessante”. Em outras palavras, ela me descreveu mais uma droga, mais um vício.

Como empreendedor que sou, posso dizer com tranquilidade que o tempo que gastaria ouvindo grupos de discussão no aplicativo do Clubhouse poderia ser muito melhor utilizado para gerar mais vendas para a minha empresa se eu o aplicasse da maneira correta. E esse mesmo raciocínio pode ser usado para vários outros ramos do conhecimento e da ação humana. A combinação das redes sociais com o fenômeno do coaching tem gerado para o mundo um resultado nefasto. As pessoas investem seu tempo escasso e precioso para ouvir outras pessoas cuja ocupação principal é falar sem nenhuma qualificação especial.

Eu já deixei este mesmo desafio em um artigo anterior, e deixá-lo-ei novamente aqui: invista sua força de vontade e seu autocontrole em duas semanas de desintoxicação digital. Desinstale seus aplicativos, pare de consumir fofocas, pare de se alimentar de tretas bobas. Cada minuto de seu tempo que puder ser redirecionado a algo produtivo, seja no aspecto monetário ou no de desenvolvimento pessoal, será um minuto ganho de volta. Seu celular deve te avisar uma vez por semana sobre o tempo de tela. Se você for um usuário moderado, verá que passa de duas a três horas por dia olhando para ela. Em duas ou três horas por dia, com a ideia certa e o foco ajustado, é possível construir um pequeno império, é possível reconstruir um casamento quebrado, é possível fazer uma pós-graduação, é possível restaurar um relacionamento complicado com os filhos. Duas horas por dia significam 730 horas por ano, ou seja, um mês e meio sem contar as horas de sono. Três horas por dia são mais de dois meses inteiros, ou seja, mais de um sexto do seu ano útil. Assustador? Sim, e muito.

Se houve uma coisa que as redes sociais me ensinaram, é que aqueles cujos pontos de vista já estão solidificados e atrelados a outrem jamais se engajarão em entender ou nem sequer considerar as minhas ideias

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Prometo que não voltarei a esse assunto tão cedo. O fato é que eu tive um impacto gigantesco em meu dia a dia, em minha produtividade, na qualidade do meu casamento e no tempo com meus filhos depois que abandonei as redes sociais. Sem exagero, foi a melhor decisão que tomei nos últimos anos. Hoje, mais de quatro meses depois, não sinto absolutamente nenhuma falta delas.

E termino este artigo respondendo a um amigo que me disse que fazendo isso eu não ajudarei a transformar o mundo em um lugar melhor para meus filhos: é exatamente o contrário, irmão. Eu agora gasto o tempo para ajudar meus filhos a transformar o entorno deles, gasto tempo escrevendo meus artigos aqui nesta excelente Gazeta do Povo, gasto tempo escrevendo novos livros (finalmente deve sair um no fim deste ano), e com tudo isso eu influencio quem se dá ao trabalho de me ler. E, se houve uma coisa que as redes sociais me ensinaram, é que aqueles cujos pontos de vista já estão solidificados e atrelados a outrem jamais se engajarão em entender ou nem sequer considerar as minhas ideias. Não sei por que demorei tanto para entender isso. Jesus já havia dito coisa semelhante quase 2 mil anos atrás, quando nos instruiu a não jogar pérolas aos porcos.