Nesta semana que passou tive a chance de ouvir várias histórias de vida dos motoristas de Uber que me transportaram em Orlando, São Francisco e Los Angeles. Usarei minha coluna semanal para compartilhar três delas.
Yuber, 48 anos de idade, venezuelano
O carro limpíssimo e com uma fragrância agradável evidencia o cuidado de seu dono. O Hyundai Sonata 2013 está em tão bem cuidado que, mesmo sem estar em busca de um novo carro, sinto vontade de comprá-lo. Após colocar a pequena mala de mão no porta-malas, sento-me no banco traseiro e recebo os cumprimentos em um inglês carregado de sotaque latino. Começo a conversa perguntando ao motorista sobre sua nacionalidade. Como muitos outros que já conheci aqui na região de Orlando, ele veio da Venezuela. Sabendo disso, dou-lhe espaço e estímulo para compartilhar sua história de vida.
Antes do início do governo de Maduro, Yuber era um empresário bem sucedido no ramo de construção civil. Empregava mais de 50 pessoas na construção de casas e pequenos edifícios, que eram geralmente vendidos para pessoas de classe média com o auxílio de linhas de crédito imobiliárias, bem semelhante à realidade brasileira. O sucesso como empresário lhe proporcionou uma vida abundante, com direito a uma bela casa, carros importados e até mesmo um jet-ski; Yuber era um rico na Venezuela já cambaleante de Chávez.
Com a estatização progressiva de diversos setores produtivos e a diminuição generalizada do crédito, decorrente da deterioração econômica e das regulações impostas pelo governo venezuelano ao setor bancário, a empresa de Yuber definhou rapidamente. Em um período de dois anos, demitiu todos os funcionários e encerrou as atividades. A burocracia estatal e as leis trabalhistas medievais – realidade demasiadamente semelhante à brasileira – transformaram o que seria uma falência empresarial num desastre pessoal. Ao mesmo tempo, Yuber começou a receber ameaças de agentes do governo, agora sob o comando de Nicolas Maduro, que queriam lhe extorquir a riqueza que ele já não mais possuía. Completamente quebrado e com a perspectiva de ser condenado por um juiz chavista-bolivariano na justiça trabalhista, ele tomou uma decisão radical: dirigiria até a Colômbia e de lá voaria para os Estados Unidos, deixando esposa e filha sozinhas por um tempo, até que tivesse dinheiro para pagar a viagem das duas. No final das contas, esse tempo foi de dois anos – dois anos sem abraçar sua filha, dois anos sem olhar sua esposa nos olhos.
A história desse homem ainda não terminou, é claro. Mas o seu trecho mais escuro e sombrio parece ter ficado para trás. A esposa e a filha de Yuber já estão há dois anos nos Estados Unidos. A família toda tem green card, concedido por motivo de asilo político. O ex-empresário agora trabalha como motorista de Uber, a ex-arquiteta trabalha como faxineira em um hotel de Orlando e a filha do casal estuda na rede pública da Flórida. Moram de aluguel, mas já têm o dinheiro para dar entrada em uma casa própria. O tom de voz e a expressão de Yuber ao contar sua história mostram indignação, revolta e tristeza, mas basta ouvi-lo falar de sua vida atual e da liberdade que está experimentando para ver o sorriso voltar ao seu rosto. Definitivamente, a Venezuela é a nova Cuba do mundo.
Existe direita na Califórnia
Saio apressado de um compromisso no centro de São Francisco e tenho apenas meia hora para chegar à próxima reunião. Nessas condições, pegar um Uber Pool, modalidade em que você divide o carro com outros usuários, é muito arriscado. Decido chamar um carro exclusivo para mim, e essa decisão acaba por cruzar o meu caminho com o de Bruce.
Careca, de compleição forte e troncuda, Bruce tem uma aparência quase que cinematográfica. Ao abrir a boca pela primeira vez, uma voz forte e rouca invade o carro, e tenho a impressão de estar conversando com Fred Flintstone, no bom sentido. Por estar em São Francisco, evito puxar conversas políticas – um conservador e apoiador de Donald Trump não costuma ter vida fácil nessas bandas do país. Mas, ao ser perguntado sobre minha carreira, respondo dizendo que sou empresário e também jornalista, e que escrevo semanalmente sobre política para um grande diário brasileiro. A feição de Bruce muda imediatamente, e sua voz ganha uma entonação que mistura raiva com empolgação. Poucos minutos depois, entendo de onde vêm os sentimentos: raiva por causa dos Clinton, empolgação em falar mal deles e de todos os esquerdistas que estão tentando afundar os Estados Unidos. Para mim, a viagem não poderia ser mais divertida.
O conservadorismo do motorista é dissociado de preferências ou ativismo político. Seu desprezo pelos Clinton é apenas a ponta mais alta de um sentimento de repulsa por toda a classe política de Washington. Bastam cinco minutos ouvindo-o falar para perceber que estou diante de alguém que não suporta mais a sujeira da política de seu país. Movido por um sentimento de camaradagem e, de certa forma, tentando fazer Bruce se sentir melhor, começo a contar as histórias da política brasileira, como se dizendo, “ei, não fique assim, tem um lugar muito pior no mundo em termos de política, o meu Brasil”. Depois de ouvir as minhas colocações, ele termina a conversa com uma das melhores sugestões que já ouvi: limite de mandatos para todos os cargos eletivos, incluindo o legislativo. Sim, isso seria devastador para os caciques da política brasileira e americana, aqueles parasitas que ocupam uma cadeira na Câmara ou no Senado por décadas ininterruptas.
No final da viagem, Bruce me conta que vai para a Tailândia no início do ano que vem. Está com o saco tão cheio das esquerdices californianas que vai ficar um anos ensinando inglês para crianças tailandesas pobres. Antes de sair do carro, recebo um cartão de visitas e um convite para tomar uma cerveja mais tarde. Não fosse meu voo para Los Angeles naquela tarde, certamente teria aceitado.
Trajano ou Kfouri? Nenhum dos dois.
Meu compromisso na UCLA está marcado para as 11h30. Por conta disso, estou tranquilo no hotel. De repente, o telefone toca e uma oportunidade inesperada se abre: o diretor da USC me receberia se eu conseguisse chegar lá antes de meio-dia. Olho o relógio – 9h30 – e abro o Google Maps para ver se seria possível; teria duas horas para tomar banho, fazer checkout, chamar um Uber, fazer um trajeto de meia hora até a USC, conversar com o diretor e depois andar mais meia hora até a UCLA. Considerando o banho mais rápido possível e o checkout expresso do hotel, eu teria apenas 20 minutos com o diretor. Confirmei com sua assistente e saí voando para o banheiro do quarto; quinze minutos depois, eu entrava no Toyota Prius de Loy Maxon.
Loy tem uma história incrível. Um simples Google de seu nome mostra que trabalhou como produtor executivo para a Fox Sports, informação que corrobora tudo o que ele me contou durante as viagens para a USC e UCLA (ele ficou me esperando enquanto eu conversava com o diretor). Desta vez, nada de política; pude me deleitar com histórias fantásticas das viagens e trabalhos de Loy no mundo do esporte, do qual sou fã. A melhor parte foi ouvir sobre Roger Federer, meu ídolo esportivo número um, e o cara mais legal do mundo esportivo, de acordo com Loy. De acordo com ele, na escala de simpatia, Federer ocupa um primeiro lugar indisputado, Djokovic também é muito gente boa, Nadal é playboyzinho demais, e Serena Williams é intragável. Do tênis passamos ao futebol americano, ao basquete da NBA, ao beisebol, à natação e, finalmente, de volta ao tênis.
Nos últimos minutos de viagem, ele olha para mim e diz: “Você deve estar se perguntando o que um produtor executivo da Fox Sports está fazendo dirigindo um Uber? Pois é, fiquei velho, e tem moleque se oferecendo para trabalhar por menos da metade do que eu ganhava.” Atualmente em carreira solo, Loy alterna alguns trabalhos e documentários onde é contratado como freelancer com a rotina diária do Uber. Sua esposa trabalha em uma agência de marketing de Los Angeles, e os dois dão seus pulos para conseguir sustentar um filho na faculdade, um outro que está tentando se profissionalizar no beisebol, e uma garota prestes a começar o ensino médio. No final, já com o carro parado em frente a um prédio da UCLA, ele me pede um cartão de visitas e diz: “Se você precisar de alguém para vender seus produtos aqui na costa oeste, ligue para mim. Estou sempre disposto a aprender coisas novas e tenho muita competência em vendas e comunicação. Assim que chegar em casa vou lhe mandar um currículo.” Depois de uma corrida dessas e de ler o currículo que ele me mandou, é bem capaz que eu ligue.
E assim, de Uber em Uber, eu vou conhecendo gente interessante nesse mundo. Mas o mais interessante mesmo é que quase não encontro esquerdistas. Deve ser porque esse pessoal não gosta muito de trabalhar duro; só um palpite.