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Flavio Quintela

Flavio Quintela

Uma morte já é demais

(Foto: 5598375/Pixabay)

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As redes sociais funcionam como um catalisador biespectral – funcionam tanto em modo revolucionário como em modo reacionário – para as reações em processo de fermentação dentro de seu espaço virtual. Munidos da sensação de segurança advinda do pertencimento grupal, pessoas que sob outras circunstâncias seriam incapazes de expressar uma ideia em público sentem-se à vontade para despejar, quase sem filtragem, suas opiniões sobre qualquer tipo de assunto. Esse superego virtual acaba sendo muito mais poderoso em termos de validação comportamental que as interações cotidianas, ainda mais em tempos de pandemia, onde se tem cada vez menos encontros pessoais. Assim, se antes o sujeito falava uma abobrinha em um grupinho de meia dúzia de seus pares, e era validado por metade deles, hoje ele escreve a mesma abobrinha em sua conta de Twitter ou Facebook e recebe dezenas ou centenas de apoios em forma de likes.

O ser humano é escuro por dentro. Quando desprovido de uma fonte externa de luz, geralmente sucumbe aos seus anseios mais baixos. E a aprovação tribalista de seus pares está muito mais para banho de escuridão que para lampejo de sol. Entra-se em uma espiral negativa de retroalimentação. Para o que poderia ser o espanto de alguns, essa trajetória descendente independe da moral declarada de quem a trilha. A única condição que parece ser comum a todos os viajantes é a predisposição a algum tipo de liderança messiânica terrena. Em outras palavras, uma certa adoração a salvadores da pátria.

Por mais que tentemos, não somos capazes de remover um centímetro do sofrimento de quem perde uma pessoa querida. O contrário, no entanto, é possível. Um ser humano é capaz de aumentar o sofrimento do outro apenas com palavras. É isso que temos visto nesses últimos 12 meses

Enfim, nesse lodo de ideias e opiniões sem o menor valor moralmente concreto, abundam as abordagens desumanas para com a morte de humanos. O importante é validar a explicação da sua turma e nada mais. Aqueles que, num passado recente, tratavam bebezinhos como pedaços de tecido sem vida que podem ser descartados ao bel-prazer da dona do corpo agora posam de protetores da sacralidade da vida humana; e os que diziam que duas células já são uma vida fazem troça das centenas de milhares de cadáveres deixados pela pandemia, como se tudo não passasse de mera teoria conspiratória para derrubar seu messias da vez. Duas tribos em conflito, não pela defesa dos doentes e necessitados, mas para saber quem é capaz de destilar mais maldade e vileza em público e ser aplaudido por isso.

Na semana que passou eu tive contato com a mais triste e terrível realidade desta pandemia. Alguém me disse, tempos atrás, que 100 mil mortos podem parecer pouco para alguém que não conheceu nenhum desses mortos pessoalmente, e que um único morto pode parecer demais quando ele morava na mesma casa que você. Uma amiga nossa, aqui de Orlando, perdeu seu papai e sua mamãe, ambos sexagenários, para o vírus maligno da Covid. Pai e mãe, num intervalo menor que uma semana. Não teve sequer como se despedir, pois eles faleceram no Brasil e ela se encontrava em casa, também infectada com o vírus, impossibilitada de viajar. Em menos de sete dias, duas das pessoas mais importantes da vida dela se foram, uma dor que eu não consigo imaginar. Consegui apenas chorar por ela, porque uma situação dessas está além de nossa capacidade de absorção. Meu pai morreu em um acidente de motocicleta, mais de dez anos atrás. Revisitando aquele momento de dor, fui capaz de sofrer por nossa amiga, mas apenas na tentativa de compreendê-la e de tentar ajudá-la. Com todo esse esforço, não fomos capazes de remover um centímetro do sofrimento dela.

O contrário, no entanto, é possível. Um ser humano é capaz de aumentar o sofrimento do outro apenas com palavras. É isso que temos visto nesses últimos 12 meses. Mortos sendo usados como capital político, como matéria-prima de peças escabrosas de “jornalismo”, como componentes descartáveis de narrativas mentirosas. Enquanto isso, para cada morto foram deixados diversos corações despedaçados. Jamais me esquecerei de um tuíte que vi recentemente, e que me fez chorar. O marido da vítima dizia algo parecido com “Acabou de abrir mais uma vaga nas UTIs de Porto Alegre, minha esposa faleceu aos 35 anos por causa desse vírus maldito”. Eu li aquilo umas 20 vezes, e fiquei imaginando a situação, colocando-me no lugar daquele homem. Eu amo minha esposa de paixão, nossos filhos adoram sua mamãe, como seria perdê-la assim? Fazendo isso, não somente me compadeço e peço a Deus que, de alguma forma, conforte essas pessoas, mas também evito fazer uso de mortes para avançar minha narrativa. Foi a única maneira que achei para manter a humanidade em um momento terrível como o que vivemos. Deve haver outras maneiras, com certeza. Basta procurar com amor e piedade.

Quero dedicar este artigo à querida Beth. Como já disse, não consigo mensurar seu sofrimento. A convicção de que seu papai Sérgio e sua mamãe Maria das Graças estão, neste momento, desfrutando da vida eterna junto ao Deus que ela adora é, provavelmente, o conforto que lhe restou em meio a tamanha tristeza. Se você conhece alguém como ela, que está passando pelo mesmo que ela, a hora é de compaixão. Se você é essa pessoa, sinta-se abraçado ou abraçada. Que o Eterno lhes dê a paz.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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