Se 2020 couber em uma imagem, não há melhor que a da Praça de São Pedro vazia, no entardecer chuvoso do dia 27 de março, quando o medo havia possuído o mundo, e vimos o papa Francisco solitariamente subindo a escadaria para depois perguntar junto com Jesus Cristo no Evangelho: “Por que tendes medo? Não tendes fé?”.
Aquele momento extraordinário de oração durou em torno de uma hora, terminando com a bênção Urbi et Orbi, mas perdurou para muito além daquele dia. Já vinha de antes e avançou para muito tempo depois, ainda sendo vivido hoje, afetando profundamente o Natal, tornado parte da longa Quaresma deste ano de peste, que também atravessará parte de 2021 (se não contaminar todo o próximo ano), tornado uma extensão temporal desta praça esvaziada pelo isolamento que foi 2020.
Se 2020 couber em uma música, não há melhor do que Galleon Ship, na versão solitária gravada ao vivo por Nick Cave em seu especial Idiot Prayer: Nick Cave Alone At Alexandra Palace. Escrevi sobre o significado maior deste trabalho de Nick Cave na sua vida, pelo luto vivido pela morte do filho e o renascimento através da dor da perda, que tanto pode nos ensinar sobre 2020 e o que mais vier pela frente em 2021.
Não há vitória sem passar pela cruz, que só é derrota para quem não reza
A imensidão do vazio, tão clamorosa na Praça de São Pedro vazia, acompanhada apenas do som da chuva, aqui se faz preenchida pela beleza íntima da dor transmutada em esperança. Da “prece idiota de palavras vazias” da música inicial do show e que lhe dá título, o cantor foi transfigurando a própria idiotice de acreditar que uma prece, seja qual for, poderia ser idiota (nunca é) e, em cada música sua reconstruída apenas pela voz e piano, foi nos fazendo mergulhar profundamente na beleza amorosa de sua oração solitária plena de palavras com significado de vida que terminou com Galleon Ship, uma ode à esperança de que tanto carecemos.
E me perdoem o cabotinismo, mas fico muito feliz e grato por, segundo o Spotify, ter sido esta a música que mais escutei neste ano. Também porque foi a que mais me acompanhou para escrever minhas colunas por aqui, inclusive esta última do ano. Desde setembro, pelo menos, quando ela foi disponibilizada para audição, não houve texto escrito sem ao menos uma audição dela. Não sei se teria conseguido sem, aliás, porque é essa a força da oração, ainda mais conjunta com outros: sustenta-nos.
Como disse o Santo Padre naquela famosa homilia da praça vazia: “Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras”. Não há vitória sem passar pela cruz, que só é derrota para quem não reza.
Se 2020 couber em uma oração apenas, então melhor não houve que a cantada por Andrea Bocelli no domingo de Páscoa, no seu especial televisionado Music For Hope. A música que encerrou o evento foi o famoso hino Amazing Grace, com o cantor cego caminhando pela nave da catedral de Milão, dela saindo e cantando na praça em frente, completamente vazia, como a de São Pedro dias antes na bênção papal. Enquanto cantava, cenas de várias metrópoles mundiais foram se intercalando, mostrando o vazio comungado pela humanidade sendo preenchido pela graça magnífica em forma de canção: “Foi a graça que ensinou meu coração a temer / E a graça aliviou meus medos / Que preciosa me aparece aquela graça apareceu / Na hora em que eu acreditei”.
Mas, eu sei, eu sei, falar em “graça maravilhosa” num ano como este parece ser demais. Seria transformar a fé num escapismo e a esperança num sentimento. Entendo o raciocínio, sei que não é fácil a luta constante de quem reza para não se sentir um idiota pedindo, pedindo, pedindo, e às vezes não sendo atendido no que pediu, esforçando-se então por manter viva sua fé e esperança de que Deus dá o que Ele acha melhor, não o que nós desejamos. Mas mesmo quando a fé é pouca e meu pirão primeiro, a graça não deixa de aparecer, ainda que apenas consoladora.
Então, se 2020 couber apenas em uma consolação, minha sugestão para recebê-la é assistir ao mesmo Andrea Bocelli cantando outra oração, “um frio e alquebrado aleluia”, em dueto com sua filha, rezando: “Eu fiz o meu melhor, eu sei que não foi muito / Eu não podia sentir, então eu aprendi a tocar / Eu disse a verdade, eu não vim aqui para te enganar / E mesmo que tudo tenha dado errado / Eu estarei aqui, diante do Senhor da Música / Com nada, nada em meus lábios além de Aleluia”.
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