Imagem ilustrativa.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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As pontas dos dedos pairavam sobre o teclado, inertes como galhos secos. A luz da tela do computador, um retângulo branco e impiedoso, refletia na parede atrás do sujeito formando uma sombra rarefeita, sem contornos. Dentro dela, um turbilhão de ideias, de frases afiadas, de verdades urgentes clamando por serem expressadas.

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O cronista, um homem de ombros curvados e olhar fixo no abismo da própria mente, respirou fundo. Abriu um novo documento. A barra de cursor pulsava, insistente, desafiando-o a começar: “As urnas eletrônicas...” Digitou e parou, hesitante.

Mas o que se pode dizer das urnas? A possível fragilidade dos códigos; as acusações de fraude agora sussurradas em cantos escuros da internet; a desconfiança crescente que corroía a fé no sistema democrático; de nada disso se pode falar mais.

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Ele sabia o que queria escrever. Ele via, sentia, respirava a urgência das palavras. Mas o espectro da censura pairava sobre si, frio e implacável

Poderia questionar a segurança do processo sem ser acusado de subversão? Ou seria melhor elogiar a suposta modernidade e eficiência do sistema, ignorando as dúvidas que o assombravam? Apagou. Rápido, quase com culpa. As palavras carregavam consigo um campo minado de interpretações e acusações.

Outra tentativa: “A chamada ‘desordem informacional’...”. E parou, mais uma vez. A expressão ecoava em sua mente como só poderia soar em qualquer mente: como a “novafala” orwelliana. Um termo elegante até, quase científico, mascarando a realidade brutal da manipulação e da censura. A verdade tornada crime, a opinião divergente silenciada sob o pretexto de combater a “desinformação”.

É o novo “duplipensar”, pensou ele, a capacidade de acreditar em duas ideias contraditórias ao mesmo tempo, a chave para a submissão voluntária. A náusea subiu-lhe à garganta. Apagou a palavra com fúria. E a cada outra abortada, a frustração se adensava. A cada frase que morria antes de nascer, a vergonha pela pusilanimidade aumentava.

Ele sabia o que queria escrever. Ele via, sentia, respirava a urgência das palavras. Mas o espectro da censura pairava sobre si, frio e implacável. Lembrou-se do aviso do departamento jurídico: “Você tem liberdade para escrever o que quiser, mas cuidado com o que escreve. Os tempos são outros”. Os dedos voltaram a pairar sobre o teclado.

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Hesitou. Escreveu: “A chuva...” Um tema neutro, inofensivo. A chuva que caía lá fora, lavando as ruas, enchendo as sarjetas, afogando as esperanças... “Saco!”, quase gritou. Até na chuva ele via metáforas perigosas, alusões subversivas, interpretações tendenciosas. Apagou.

A tela continuava a brilhar, anódina, em meio à sua escuridão. As horas passavam, lentas e pesadas como correntes. O cronista permanecia imóvel, paralisado pelo medo, pela angústia, pela crescente sensação de impotência. Era um prisioneiro em sua própria mente, condenado a um silêncio autoimposto.

Fechou o laptop com um clique seco, quase um soluço. Levantou-se, cambaleante, e caminhou até a janela. Lá fora, a cidade dormia, silenciada, rendida. E ele, o cronista, não era mais do que uma sombra entre sombras indistinguíveis na calada da noite.

* Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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