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Se Curitiba fosse dos invisíveis exibidos, dos Trapos em cargos de confiança, dos vampiros banguelas, dos cosplays de Leminski, dos plurais sem diversidade, jamais seria Curitiba. Que tão pouco é a da propaganda oficial, seja a de hoje ou a de todos os ontens. Em Curitiba cabem todas as Curitibas, com nenhuma delas nos definindo. Acho que Cristóvão Tezza tem razão: “Curitiba é uma atmosfera”.
Tezza deu essa definição num encontro de um grupo de leitura cuja mediação tenho a honra de fazer. Estávamos a ler seu romance que o tornou conhecido, Trapo, e viajando literariamente por nossa cidade que completou 330 anos nesta semana. Por causa desse trabalho, revisitei vários autores conterrâneos, também conhecendo novos. E fiquei a pensar: quem somos, como curitibanos?
Não consigo, por nossa literatura, apontar isso ou aquilo como um traço distintivo, portanto definidor, de nossa identidade e, no entanto, ela é nítida, quase palpável, não fosse uma atmosfera. Sendo isso, é preciso a névoa para vermos Curitiba, que se revela, portanto, mais como uma paisagem interior comungada do que um exterior urbanizado cheio de parques e radares por todos os lados.
Não consigo, por nossa literatura, apontar isso ou aquilo como um traço distintivo, portanto definidor, de nossa identidade e, no entanto, ela é nítida, quase palpável, não fosse uma atmosfera
Às vezes, quase sempre, parecemos sufocados pelo nevoeiro das futilidades de nossa elite, das invejas dos que poderiam ter sido e não foram, das mesquinharias do clima, dos ressentimentos vazando por nossa boca maldita que adora falar mal de si, mas daqui não sai, fantasiando-nos de antipatia ao visitante desavisado.
Às vezes, mas nem sempre. Há ternura em Dalton Trevisan, por exemplo. Leia o conto Um Dia, publicado em O Beijo na Nuca: “Sobre a cidade o grande pássaro de luz revoa no seu fremir de pálpebras. No céu ventam delícias, um ipê sorri maravilhas, obediente ao meu poder. Sou o primeiro homem descobrindo o dia na sua caverna”.
Parece pouco? Uma mínima poesia de Helena Kolody como resposta: “Tudo se torna minúsculo / nas almas pequenas”. O título desse poema é Espelhos Côncavos. Acho boa pista para conhecer nossa paisagem interior, vendo no exterior que parece tão pouco, pequeno, um quase nada, também uma portinhola para o muito, o grandioso, o inefável. Por isso, Curitiba cabe toda num haikai. De novo, Kolody:
Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.
Aliás, o primeiro livro de poemas de Helena Kolody, de 1941, preparado em segredo por ela como presente-surpresa de aniversário de 60 anos do pai, inteiramente publicado por ela, que escolheu papel, tipografia, criou a capa e bancou com seu dinheiro uma tiragem de 450 exemplares, chama-se Paisagem Interior.
Infelizmente, o pai morreu dois meses antes do seu aniversário, com ela quase desistindo da publicação. Mas amigas a incentivaram e o livro saiu. Essa paisagem interior, resultante de dez anos de criação poética, agora marcada pela morte, que fez da festa um velório, nasceu tão alargada quanto profunda. Leia Reflexos: “Teus olhos são limpos como o céu varrido pela tempestade / desertos como a terra depois do dilúvio, / profundos como os abismos abertos pelos cataclismos. / É que passou por eles a Vida.”
Se fosse eu a escolher apenas uma pessoa a nos representar, seria Helena Kolody. Desde 1969 ela se instalou no apartamento 901 do edifício Vila Rica, que fica na Rua Voluntários da Pátria, 11. De sua janela, via a Serra do Mar ao longe, com a praça Rui Barbosa ao perto. Dessas visões, quantos poemas.
Se fosse eu a escolher apenas uma pessoa a nos representar, seria Helena Kolody
Sua biografia revela a “vidinha” da maioria dos curitibanos, tão aparentemente invisível quanto. Raramente era reconhecida nas ruas, mas deduzo que pouco se importava com isso. Com o que se importava, aí sim, era com o que era capaz de reconhecer.
Dentre as coisas que reli, uma foi oRoteiro Literário – Helena Kolody, que a Biblioteca Pública disponibilizou anos atrás. Uma passagem me marcou, uma citação dela dizendo: “Dia destes, quando cruzava a Praça Rui Barbosa, vi uma pena de pombo cair na calçada. Apanhei-a, contemplando-a, e na hora pensei num poema. Como tinha apenas um lenço de papel, foi nele que escrevi: ‘Apanhei na calçada uma pena de pombo, aprisionei um momento de voo e vento’”.
Nesse olhar, quanto cuidado. Nessas contemplações, nossa atmosfera Abismal:
Meus olhos estão
olhando
de muito longe, de muito longe,
das infinitas distâncias
dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria sua face.
Mas os cinco dedos pendem como um lírio murcho
ao longo do vestido.
Aqui tudo é leve, silencioso, indefinido,
imóvel.
Não tenho mais limites.
Tornei-me fluída como o ar.
Seus olhos têm apelos magnéticos,
mas estou abismada
em profundezas infinitas.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos