Assim que a França venceu a Copa do Mundo o debate da imigração, da multietnicidade, da miscigenação naquele país foi reaceso junto com os carros incendiados em Paris durante as comemorações, que aliás já vinham sendo queimados desde um dia antes, nos festejos da Queda da Bastilha. Ao todo, foram ao menos 2 mortos, dezenas de feridos (dentre eles 45 policiais), inúmeros saques em lojas, mais de 800 carros incinerados e mais de 500 pessoas detidas. Enquanto eu acompanhava a “festa” e o debates, mais e mais me lembrava do acerto da “profecia” de Michel Houellebecq enxergando para além dos lados em disputa, quando ambos estarão derrotados. E calados.
Quem leu seu indispensável Submissão sabe por quê. O que vem em consequência da degradação da cultura francesa “raiz” e do surgimento de uma nova em seu lugar não será nada de “multicultural”, mas islâmico. Um trechinho da obra: “Talvez seja impossível, para pessoas que viveram e prosperaram em determinado sistema social, imaginar o ponto de vista dos que, nunca tendo nada a esperar deste sistema, encaram sua destruição sem nenhum terror especial.” Agora leia isso assistindo os vídeos pela internet da multidão saqueando lojas pela Champs Elysées e vibrando a cada carro desfeito em chamas. O ponto de vista de Houellebecq, no fim das contas, pode ser resumido por outro trecho do seu livro: “as civilizações não morrem assassinadas, mas se suicidam.”
Mas quem dá bola para literatura hoje em dia? Houve épocas em que se dava, tanto que muitos se orientavam por ela. Uma dessas épocas foi durante o século XIX, quando Balzac, na França, e Dickens, na Inglaterra, forneciam o que Stendhal chamava de “espelhos andantes” da sociedade. A imprensa informava, mas era a literatura quem “explicava” melhor o que se passava. O realismo balzaquiano retratando “todos os aspectos da sociedade”, como dizia o próprio autor, e a “crítica social” dickensiana que fazia os leitores esperarem seu próximo livro como quem hoje espera a próxima temporada de sua série preferida, deram fama e autoridade em vida aos escritores, e uma via simbólica para suas sociedades se enxergarem e, em se enxergando, compreenderem melhor o que se passa no meio em que vivem. Houellebecq é dessa linhagem e seu retrato de uma França suicida apenas aguardando ser dominada pela cultura islâmica, uma vez que você o lê, também vê por entre a cortina de fumaça dos veículos incendiados na “festa” francesa.
No Brasil, como nunca tivemos público leitor considerável tampouco tivemos escritores com tal autoridade social, embora nunca nos faltasse quem nos retratasse. Para ficar em dois exemplos óbvios, lembro de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, mostrando a divisão em nossa elite entre os partidários da República e os do Império, e o retrato social feito por José Lins do Rego das consequências da substituição dos engenhos de cana de açúcar por usinas no Nordeste, com o crescimento do êxodo rural e a favelização dos grandes centros urbanos, como no Recife de O moleque Ricardo.
Mas também é fato que nas últimas décadas nossa literatura não mais tem acompanhado ou conseguido retratar o que vivemos de maneira minimamente abrangente ou suficiente, provavelmente pelo enjaulamento ideológico em que nos encerramos. O paradoxal é que situações como a que vivemos atualmente são um verdadeiro paraíso para escritores. Bastaria relatar, retratar, sem maiores esforços da imaginação, para termos grandes obras. A própria riqueza da realidade faria o serviço. Fico a imaginar o que não conseguiriam fazer um Balzac ou um Dickens com tamanha fartura de material. Certamente Balzac escreveria mais do que as 95 obras que compõem sua Comédia Humana, como também deixaria muito mais do que as 48 inconclusas, como deixou.
Mas talvez nossas letras pátrias estejam recuperando sua capacidade expressiva da realidade. Ao menos é visível o ressurgimento de novos bons poetas e também de alguns prosadores que, se não por mais, ao menos tentam não naufragar em ideologismos ou subjetivismos ególatras. Um desses é o curitibano Diogo Fontana que em seu livro de estréia, a novela A Exemplar Família de Itamar Halbmann, tenta e consegue balzaquear tipos sociais muito, mas muito comuns hoje em dia, não apenas em Curitiba, mas em todo grande centro urbano.
Em seu prólogo o autor confessa que iniciou seu escrito mais como um exercício de imitação do estilo de Balzac e que aos poucos se deu conta de que não só o estilo, mas a forma balzaquiana seria perfeita para atingir seu objetivo, que era retratar “um espécimen fácil de encontrar no meio jurídico e universitário, o petista milionário, que vive do capital alheio, profere um discurso radical, mas não se furta de adotar os valores e o estilo de vida burguês”. O intento foi alcançado com folga, muito por causa dessa forma balzaquiana que deu ao autor a distância necessária para fazer um retrato realista independente do que o próprio autor pense ou julgue dos tipos retratados. Com isso, é simplesmente impossível ler a novela sem reconhecer várias figuras reais que poderiam estar no lugar dos personagens-tipo da história. Itamar Halbmann, família e amigos são legião.
Mas o empréstimo de estilo e forma traz sempre um problema sério para um escritor: o de engessar seu estilo pessoal a ponto de sufocar sua própria voz. Lendo a novela de Fontana temia que isso pudesse ter acontecido, tendo por resultado uma obra formalmente correta, até precisa em seu realismo, mas distante do próprio autor, logo, sem personalidade. Mas não foi o que aconteceu, pelo contrário. Na primeira metade da história, quando se conta das origens de Itamar e família, sua ascensão social e profissional coincidindo com o “paraíso” lulista no país, a bem-feita emulação balzaquiana a tudo conduz, mas quando a história adentra o período do segundo governo Dilma, especialmente as históricas manifestações de rua, a angústia dos personagens exige que o distanciamento balzaquiano seja encurtado e é aí que o estilo do próprio autor, Diogo Fontana, assume a frente e, com ele, o leitor é “tragado” emocionalmente para dentro da história que passa a acompanhar não mais como quem a assiste, mas como quem vive ao lado dos personagens.
Com isso, A exemplar família de Itamar Halbmann se torna muito mais do que um exercício de imitação de estilo, o que, se fosse apenas isso, faria da obra um livro fraco, assim como também supera o mero fixar realista de um tipo humano, que era seu intento e foi realizado com perfeição, mas consegue ser um verdadeiro “espelho andante” da sociedade brasileira das últimas décadas, sendo para o leitor uma possível via simbólica para compreender mais e melhor o como e o por que chegamos no estado de coisas em que nos encontramos. Não é pouca coisa.
***
Em tempo: o livro será lançado em Curitiba neste sábado, dia 04/08, na Livraria da Vila, no shopping Pátio Batel, à partir das 15h30, com sessão de autógrafos com o autor.