2019 terminou como? Com o tapa do papa. Simbólico, não? Ainda mais tendo saído o tal filme Dois Papas, que na verdade é sobre apenas um, Francisco, com Bento XVI servindo como o Dedé do Didi. Mas aí estou sendo injusto, os filmes dos Trapalhões são muito melhores que este, não merecem comparação. Adversário à altura seria Rampage, aque assisti nesta semana também e cuja história é bem mais verossímil do que a inventada em Dois Papas: temos um lobo, um crocodilo e um gorila gigantes destruindo Chicago. É possível, sim, leitor de pouca fé.
Mas, antes do tapa, tivemos a chegada impressionante da corrida de São Silvestre, com a ultrapassagem de Jacob Kiplimo por Kimiwott Kandie nos últimos passos da prova. Assistiu? Vale a pena. A cara de surpresa de Kiplimo, quase a da senhora que levou o tapa do papa; a ficha do que aconteceu caindo segundos depois, quase a do papa depois de ter dado o tapa. É simbólico também. Do quê, exatamente? Da nossa fraqueza.
Quando se é jovem achamos possível fazer mais do que somos capazes. E quando conseguimos, viramos heróis, ainda que derrotados
Kiplimo é jovem, tem apenas 19 anos, já vitorioso na carreira e um ídolo nacional de Uganda. Sua entrevista depois da prova demonstra que tem a maturidade do vencedor, lamentando a derrota, mas já aprendendo com ela. Disse que da próxima vez tentará abrir mais distância do segundo colocado, mas acho que nem precisa tanto, ô, Kiplimo, uma olhadinha a mais antes de terminar a prova já resolveria. Mas entendo que pense assim, quando se é jovem achamos possível fazer mais do que somos capazes. E quando conseguimos, viramos heróis, ainda que derrotados, como aconteceu com Dorando Pietri, em 1908.
Não sei se você sabe, leitor wikipedieiro, mas a distância oficial de uma maratona é de 42,195 quilômetros, estabelecida em 1921 pela Federação Internacional de Atletismo por causa dos Jogos Olímpicos de Londres de 1908, onde esses metrinhos a mais foram acrescidos em consequência do pedido do rei Eduardo VII, que queria que a maratona começasse no palácio de Windsor. E esta maratona entrou pra história por outra razão também.
O italiano Dorando Pietri, 23 anos, liderava a prova no seu final, mas já tendo passado do ponto de exaustão, sem fôlego e desorientado. Ao entrar no estádio olímpico, para os tais metros finais a mais, foi na direção contrária e, se não fosse ajudado pelos fiscais de prova, jamais a teria terminado, pois, além de lhe devolverem ao rumo certo, ainda continuaram ajudando-o a se levantar, pois caía constantemente até conseguir, enfim, atravessar a linha de chegada, ainda em primeiro. Mas não venceu; foi desclassificado por ter sido ajudado, e o ganhador da medalha de ouro foi o americano Johnny Hayes. Há uma gravação da prova, confira uns trechos:
Não venceu, mas a derrota heroica lhe foi muito mais proveitosa. Quem estava no estádio assistindo à prova foi Arthur Conan Doyle. Sim, o criador do Sherlock Holmes, que escreveu sobre a corrida ao jornal Daily Mail: “Ele foi ao extremo da resistência humana. Nenhum romano do alto escalão jamais se comportou melhor que Dorando, na Olimpíada de 1908. A grande raça ainda não está extinta”. Mas Doyle foi além. Em sua autobiografia, Memórias e Aventuras, contou mais sobre o depois da corrida: “Eu não apenas escrevi sobre Dorando, mas comecei uma campanha para ele no Daily Mail, que arrecadou mais de 300 libras – uma fortuna em sua vila italiana – para que pudesse abrir uma padaria, o que ele não poderia ter feito com uma medalha olímpica”.
Ao que parece a padaria nunca foi aberta, pois Dorando virou celebridade internacional, ganhando bom dinheiro em diversas corridas pelo mundo, especialmente nos Estados Unidos, competindo várias vezes com Hayes e vencendo quase todas. Ganhou também um troféu especial dado pela rainha da Inglaterra e virou música, Dorando, composta por Irving Berlin. Nada mau para um derrotado, não?
Eis mais um bom símbolo sobre a fraqueza humana. Se com Kiplimo ela pode se tornar força pelo quanto se tira de lição da derrota, ou seja, pela maturidade adquirida por causa dela, talvez até sabedoria, com Dorando temos o limite da força em que reencontramos a fraqueza, mas agora transfigurada em força maior ainda, digna de admiração e até de prêmios melhores do que a vitória. E o que tem a ver o tapa do papa com isso? Com ele enriquecemos ainda mais o símbolo da fraqueza humana, que pode ser não apenas instrutiva ou heroica, mas mais do que isso: gloriosa.
São Paulo, em sua segunda carta aos Coríntios, no versículo 12, escreveu: “Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo” Só podemos encontrar essa glória na miséria do nosso arrependimento. Pois se 2019 terminou com a fraqueza do papa Francisco dando um tapa numa fiel, 2020 começou com ele transfigurando-a para a glória de Cristo ao pedir desculpas publicamente: “Muitas vezes perdemos a paciência. Eu também. Peço perdão pelo mau exemplo de ontem”.
Que belo exemplo. Muito melhor que o da falsa fraqueza dos papas inventados no filmeco de Fernando Meirelles, sobre o qual remeto o leitor à crítica bem fundamentada feita por Bruno Lincoln em entrevista dada a Francisco Razzo para esta Gazeta do Povo. Até queria escrever mais sobre, mas é começo de ano e a fraqueza da ressaca me impede, deixando-me como o Conan Doyle e o Dorando quando da entrega daquelas 300 libras, como contou Doyle: “(fiz) a apresentação em inglês, que ele não conseguiu entender; ele respondeu em italiano, o que não conseguimos entender; mas acho que realmente nos entendemos da mesma maneira”.
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