Se Jordan Peterson é hoje famoso mundialmente não o é por seu trabalho como psicólogo clínico, nem como professor na Universidade de Toronto. Tampouco se deve à sua obra escrita, os livros Mapas do Significado, recentemente traduzida no Brasil pela É Realizações, e o mais famoso, 12 Regras Para a Vida – Um Antídoto Para o Caos, que só se tornou um best-seller justamente em função do que o tornou célebre no mundo todo: ser um bem sucedido soldado na chamada guerra cultural em que vivemos.
Sua entrada nessa guerra se deu em 2016, pela coragem de publicamente se opor à lei C-16, imposta pelo governo canadense, que proíbe a referência ao sexo biológico de uma pessoa, tornando crime quem assim o faça. Significa dizer que um professor, como Jordan Peterson, não poderia se referir a uma mulher como mulher, nem a um homem como homem, e se simplesmente falasse isso estaria cometendo um “crime de ódio”. Por consequência, Jordan foi considerado como sendo do “exército conservador” dessa guerra cultural, tornando-se, portanto, um soldado da “direita”.
A partir dali, Jordan se tornou menos psicólogo e professor, passando a ser o famoso intelectual, palestrante e debatedor muito requisitado, tendo recentemente participado do que se vendeu como sendo o “debate do século” (e ficou muito, mas muito longe disso) com o cientista social Slavoj Zizek, outro soldado, mas que seria do exército progressista. Contudo, foi uma entrevista dada no início de 2018 à uma emissora de TV inglesa que o transformou em celebridade mundial, por desconcertar a entrevistadora, a feminista Cathy Newman, dando uma aula de como refutar as falácias politicamente corretas fazendo uso apenas de bom senso, educação e bom humor.
Desde então tem sido não somente tratado como um intelectual de direita, mas “pior” do que isso, como sendo da chamada “alt-right”, que seria a extrema-direita. Que existem os radicais de direita, não há dúvida, como também não há de que Jordan Peterson não é um deles, sendo assim tratado pelos progressistas porque, nesta guerra, quando não se consegue vencer um soldado inimigo resta identificá-lo como extremista, radical etc., esperando-se que, sendo isso, ninguém lhe dê maior atenção e, se der, não precisaria ser rebatido, afinal, “ele é um extremista”…
Mas Jordan Peterson nos serve de muito melhor exemplo para compreender essa guerra cultural em outro sentido, aquele de que tratei na coluna passada. Quando falamos em conservadorismo ou progressismo, estamos na verdade falando, para usar a expressão de Peterson, de uma arquitetura de crenças, que por sua vez estão fundadas em valores enraizados na cultura que o sujeito cultiva em sua alma. Em seu prefácio à primeira obra, Mapas do Significado, Peterson nos contou um pouco de sua biografia à luz das arquiteturas de crenças que mal ou bem foram suas. Vale muito a pena conhecê-la, começando a história por aquela crença na qual nasceu: a do catolicismo.
Como, porém, o catolicismo de sua família era frágil, pois pareciam praticá-lo mais por um hábito social do que com consciência do que fosse, não demorou para Peterson abandoná-lo ainda na adolescência, considerando que “muitos dos dogmas básicos da crença cristã eram incompreensíveis, se não claramente absurdos”. De fato, o catolicismo da família e da sociedade em torno eram tão frágeis que ninguém pareceu se importar com a deserção de Peterson.
Mas todo “desaculturamento” implica necessariamente um re-aculturamento em solo diverso. Tal como tantos que passaram pelo mesmo processo de abandono de suas raízes católicas, adivinha onde Jordan Peterson encontrou outro terreno cultural aparentemente mais fértil? Sim, no socialismo, do qual também se desiludiria mais tarde, por motivos óbvios ao leitor (espero!): “Olhando para trás, fico impressionado como minhas ações – reações – no fundo eram estereotipadas. Eu não conseguia racionalmente aceitar as premissas da religião conforme as entendia. Então, recorri a sonhos de utopia política e poder pessoal. A mesma armadilha ideológica pegou milhões de outras pessoas nos séculos recentes”.
Mas a decepção não foi apenas com a ideologia socialista e sim com toda e qualquer ideologia: “Não era a ideologia socialista que representava o problema na época, mas a ideologia em si, a qual dividia o mundo de forma simplista, entre os que pensavam e agiam de modo adequado e os que não.” Ok, mas quando você recusa a cultura onde nasceu e também aquelas encontradas pelo caminho, fornecidas pelas ideologias, o que acontece? Você se descobre como sendo um náufrago: “Todas as minhas crenças – que tinham emprestado ordem ao caos da minha existência, pelo menos temporariamente – tinham se comprovado ilusórias; eu não conseguia mais ver sentido nas coisas. Fiquei à deriva; não sabia o que fazer nem o que pensar.”
Eis outra coisa em comum com “milhões de outras pessoas nos séculos recentes”. Nunca antes na história tantos sofreram e sofrem de falta de sentido na vida, sentem-se desorientados e atirando à esmo em busca de algo que dê um mínimo de ordem, de sentido à existência. Desse impulso e carência nasceram, por exemplo, a epidemia do uso de drogas, o mercado de autoajuda e a espiritualidade de shopping center buscando em religiões e seitas orientais o que se recusa das religiões que nos formaram.
Não à toa Peterson, depois de formado em ciência política, foi estudar psicologia, o que o levou a pesquisar a arquitetura das crenças, mapeando os sentidos possíveis para a vida humana através do “material mitológico comparativo”, cujos resultados estão expostos em sua primeira obra e é o que fundamenta as regras para a vida tratadas em seu best-seller. Foi esse estudo que lhe deu a ordem e o sentido que buscava, aliás: “Descobri que as crenças fazem o mundo, de uma maneira tão real – que as crenças são o mundo, em um sentido mais que metafísico. Contudo, essa descoberta não fez de mim um relativista moral; pelo contrário, fiquei convencido de que o mundo em que se acredita é organizado; que há absolutos morais universais (embora eles sejam estruturados de tal modo que uma faixa diversa de opinião humana permanece tanto possível quanto benéfica). Acredito que os indivíduos e as sociedades que desprezam esses absolutos – por ignorância ou oposição deliberada – estão condenados à miséria e possível dissolução.”
Esse mundo organizado é, necessariamente, “um sistema de valor – uma hierarquia de valor, em que algumas coisas têm prioridade e importância e outras, não. (…) Assim, sem valor, não temos sentido”, conforme expôs melhor em 12 Regras Para a Vida. Mas, se é assim, qual o valor fundamental, a base ou o centro articulador deste sistema? Peterson, como bom junguiano, faz muito uso dos sonhos para lançar “luz nos lugares sombrios que a própria razão ainda tem que conhecer”. Um dos sonhos o colocou numa catedral, mais especificamente no centro da cruz. Segundo suas palavras: “Meu sonho havia me colocado no centro do próprio Ser, e não havia escapatória”. Ora, se ele estava numa catedral e foi colocado no centro do Ser, que é a cruz, da qual não há escapatória, então a resposta só pode ser Jesus Cristo, com tudo que isso implica.
Mas Jordan aí errou. Há escapatória da cruz, sim, e ele mesmo escapou algumas frases depois, ao concluir diferente do óbvio. Para ele, “o centro é ocupado pelo indivíduo”. Ou seja, seria possível “encontrar sentido suficiente na consciência e experiência do indivíduo”. O centro, no fim das contas, seria o eu. Nada mais distante, portanto, do centro da cruz de uma catedral que simboliza o inverso de um “eu”, mas sua entrega, como consta, por exemplo, do Evangelho de São Mateus 16:24-26: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á. Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?”
É, aliás, impossível dissociar esse sonho que ele próprio considerou fundamental e revelador, narrado na introdução de 12 Regras Para a Vida, com o dia relatado no seu primeiro livro em que ao chegar em casa de uma festa da faculdade, chateado e com raiva, pegou uma tela e umas tintas e: “Fiz um esboço grosseiro e tosco de um Cristo crucificado – ofuscante e demoníaco – com uma naja enrolada na cintura nu, como um cinto. O quadro me perturbou – atingiu-me, apesar do meu agnosticismo, como sacrílego. Mas eu não sabia o que ele significava ou por que eu o tinha pintado. De onde ele tinha vindo? Eu não prestava atenção em idéias religiosas há anos.”
Pois se me permitem, eu sei a resposta, sei de onde veio. Foi do mesmo “lugar” de onde veio o sonho com a catedral e a cruz, do fundo da alma onde acontece a verdadeira guerra cultural para todos nós, lá onde Jesus Cristo é quem a está lutando por nós e apesar de nós, sendo que no caso de Jordan parece-me que Cristo o está chamando quase que aos berros para retornar “para casa”, para aquela “arquitetura da crença” na qual nasceu, mas ainda resiste em retornar. É até compreensível que não queira ou mesmo não escute o chamado, pois essa é a consequência da amputação espiritual na cultura em que vivemos e é a verdadeira causa de todas as guerras culturais em andamento: ficamos sós com nossa individualidade para enfrentar a vida e lhe dar um sentido e, se conseguimos, como Peterson conseguiu, experimentamos a delícia de termos uma personalidade de verdade, aquilo que Goethe considerava ser a maior força existente no mundo.
Tenho esperança, e rezo para isso, de que um dia Jordan Peterson descobrirá que a maior força existente no mundo não é a personalidade humana, mas a personalidade de Jesus Cristo. Sem Ele seremos, no fim das contas, algo parecido com o homem sem qualidades, magistralmente retratado por Robert Musil no livro que leva esse nome como título, já citado na coluna passada e que vale retornar para encerrar essa série de artigos, esperando que agora isso faça um pouco mais de sentido ao leitor que até aqui me acompanhou: “ao fim de tudo, havendo certamente suficiente espírito, não faltaria apenas que o espírito tivesse espírito?”