Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, a Ideia Lula deu por si na cama, transformada num minúsculo ser humano. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metalúrgico, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre peludo sobre o qual a camiseta dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar em direção ao queixo. Comparadas com o resto do corpo, as pequerruchas pernas, que eram miseravelmente duas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
“Que me aconteceu?”, pensou. Não era um sonho. O quarto, uma vulgar cela de presídio humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, desembrulhada e em completa desordem, uma série de jornais. Lula era ex-presidente, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora ao lado dele, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, que ele como ideia não conhecia, mas como ser humano sabia até o nome, chamava-se Marisa!
Lula desviou, então, a vista para a janela e deu com o céu nublado – ouviam-se os pingos de chuva a bater na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. “Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio?”, cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado esquerdo e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou pelo menos 100 vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.
“Oh, meu Deus”, pensou, “que trabalho tão cansativo escolhi!” Ser uma ideia, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho de presidente propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de não poder mais viajar, preocupado com as visitas da Gleisi, com a cama e com as refeições regulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. “Diabos levem tudo isto!” Sentiu uma leve comichão no peito; arrastou-se lentamente sobre as costas, mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que algo dentro dele dizia se chamar coração, mas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma mão, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.
Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. “Isto de levantar cedo”, pensou, “deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros ex-presidentes que vivem como presidiários, mas não como uma ideia. Por exemplo, enquanto volto para a cela, de manhã, para tomar nota das notícias que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso como o Mandela: era logo esquecido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim – quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus petistas, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o Serjo Môro e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da escrivaninha! Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que o PT lhe deve – o que deve levar outros cinco ou seis anos –, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque a minha audiência começa logo depois do almoço.”
(…)
“Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, vou chamá-lo de ex-presidente”, disse uma voz, que não era a da mãe, “o senhor prefere como?”
Aquela voz suave! Lula teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com uma horrível e persistente rouquidão como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Lula queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer:
“Doutora, se puder falar um pouquinho mais alto para mim seria bom.”
“Tá. O senhor sabe do que está sendo acusado nesse processo…”
“Não! Gostaria de pedir, se a senhora pudesse me explicar, qual é a acusação.”
Conseguiu que a voz saísse com firmeza, mas algo dentro dele estava diferente, algo que nunca antes havia sentido, algo que se insinuava em seu pensamento com o nome de Consciência Moral. O que seria isso, porém, não sabia, apenas sentia que o deixava inquieto.
Enquanto a juíza explicava, um nervosismo crescente se apoderava dele. A respiração ofegante se tornava incontrolada e uma necessidade extrema de fazer algo, qualquer coisa, se impunha. Arrumava o microfone, ajeitava uma rama de papéis, tomava água, mas nada adiantava, tudo se passava diferente do que imaginava, do que havia combinado com seus advogados.
Foram horas assim e, quando o fim se aproximava, ao ver seu advogado José Roberto Batochio pedindo licença para sair, deu-se conta de que ser um humano não era uma boa ideia e suplicou, brincando a sério: “Me leva com você!”
(…)
Ao voltar à sua cela, embora esgotado, não conseguia descansar, repassando mentalmente todo o acontecido. Talvez tenha sido um erro irritar a juíza, talvez tenha sido um erro não tê-la confrontado o tempo todo, talvez tenha sido um erro ter respondido tudo, talvez tenha sido um erro ter não ter ficado em silêncio. Talvez, talvez… Sorriu. Estava voltando ao normal, sabia que estava. A comichão se fora, não sentia mais aquele frio no peito, nem peito sentia mais, logo estaria desconhecido de tudo. Tinha razão. Em pouco tempo voltou ao conforto de ser o que era: uma ideia que não sabia de nada.
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