“Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer”, escreveu Clarice Lispector em seu Um Sopro de Vida, livro publicado apenas depois de sua morte, por câncer, ocorrida em 1977. Trata-se de (mais um) de seus romances curtos em que retrata o processo doloroso de criação de um escritor, mantido anônimo, criando um personagem, Angela Pralini, que seria uma espécie de alter-ego seu, mas que ganha vontade própria, surpreendendo seu criador.
É, portanto, não a dor do processo de criação da arte, mas da própria vida: “E agora sou obrigado a me interromper porque Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussurro das ventanias”.
As obras de Clarice são marcadas pela angústia e pelo desespero, o que faz com que muitos leitores sintam que a leitura os “deprime”. Compreendo, mas esse desespero e angústia não dão a forma final, nem a última palavra. É o contrário, tudo na obra de Clarice toma a forma de uma explosão de vida que transcende suas histórias, como Angela Pralini, que serve aqui como símbolo disso.
A todo aquele que sobrevive à morte próxima, seja por que causa for, assim como a todo aquele que realmente a aceitou, a vida que ainda resta se transfigura em algo maior e melhor. Em algo sagrado
A angústia exasperante que sentimos lendo Clarice é por não podermos escapar de um confronto inescapável com o vazio da morte, olhando-a de frente, com tudo de angustiante que isso traz. Angela, em Um Sopro de Vida, pergunta-se: “Na hora de minha morte – que é que eu faço? Me ensinem como é que se morre. Eu não sei”. Ninguém sabe. Olhar para a morte pelo fim que ela obviamente significa só pode ser, em parte, desesperador. Preciso “lembrar” do que estamos a viver com essa pandemia?
Volto à citação com que abri este escrito. É preciso “aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer”. Repare bem como, para “aceitar em cheio” a vida, é preciso também e antes aceitar a morte. Mas como saber se a aceitamos de verdade? Creio que somente quando a morte fica próxima demais, como tantos ficaram ao padecer da Covid-19. Ainda que não tenham desenvolvido a forma mais grave. Não há quem, diante do teste positivo, não lute contra o medo da morte próxima.
Mesmo quem não a pegou (ainda?) certamente conhece alguém próximo que passou por isso. Que eu saiba (ainda?) não a peguei, mas já perdi a conta da quantidade de pessoas próximas que sofreram por causa da doença. Alguns morreram, infelizmente, mas a maioria, graças a Deus, se recuperou. Agora mesmo, enquanto escrevo, recebo a boa notícia de um amigo de longa data, internado na UTI com 80% do pulmão comprometido, apresentando melhora consistente. Imaginar o que ele passou é me imaginar passando pelo mesmo. E sentir medo, muito medo. Como encarar isso, chegando àquela aceitação da morte?
Nesta semana, terminei de assistir à terceira temporada do ótimo seriado O Método Kominski, disponível na Netflix, com uma atuação soberba de Michael Douglas como um professor de atores. A certa altura, quando está a dar uma aula de atuação para cenas de morte, ensinou: “Conforme a vida lentamente se esvai e oscilamos no limite da não existência, como sussurraríamos as últimas palavras de sabedoria e perspicácia? Mas é isso que acontece quando a morte se aproxima? As pessoas exigem promessas de quem estão deixando para trás? Confessam seus pecados? Fazem uma piada? (...) Estou pedindo que pensem no que realmente acontece nesses momentos finais. Não estou falando de mortes violentas e chocantes. Estou falando de quando você sabe o que está vindo. Quando você já se entregou ao último truque de mágica. Quando realmente desaparecemos. Sentei ao lado da cama e segurei a mão de amigos e pessoas queridas enquanto elas davam seu último suspiro e posso dizer o seguinte: o dramático solilóquio no fim da vida é um absurdo completo. Se algo está sendo dito, é internamente. Quase conseguimos ouvir. Elas têm uma conversa interna repleta de incredulidade e admiração pelo fato de suas vidas estarem chegando ao fim. Mal percebem que você está ali. Para os que estão morrendo, os vivos são irrelevantes. Então, se algum dia tiverem a oportunidade de atuar numa cena assim, façam com respeito, considerem-na sagrada”.
Quando “atuamos” de fato diante da realidade imaginada da nossa própria morte, o chamado memento mori, o medo diminui consideravelmente e a aceitação se apresenta pelo que de fato é: vida mais viva do que a mera existência. Aí entendemos uma das epígrafes de Um Sopro de Vida, de autoria da própria Clarice: “Haverá um ano em que haverá um mês em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da morte transfigurada”.
A todo aquele que sobrevive à morte próxima, seja por que causa for, assim como a todo aquele que realmente a aceitou, a vida que ainda resta se transfigura em algo maior e melhor. Em algo sagrado. Viver, daí, será como o narrador-escritor anônimo de Um Sopro de Vida escreveu: “Viver é uma espécie de loucura que a morte faz”.