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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

A morte, ei-la (mais uma vez)

(Foto: Pixabay)

Para meus “tios” e “primos”, a “turma” toda

“Nós não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido. O vazio que nos rodeia faz-se então sentir…” Eis um trecho impactante de Vôo Noturno, de Saint-Exupèry, que reli nesta semana. É uma notável e pequena obra-prima que, segundo Andre Gide, para além do valor literário “tem por outro lado o valor de um documento, e estas duas qualidades, inesperadamente reunidas, conferem à Vôo Noturno sua importância excepcional”. Valor de documento porque registra ali a experiência pessoal de Exupèry como aviador confrontando a morte muito de perto e com frequência diária.

O contexto no qual o trecho citado aparece se dá quando a esposa de um dos aviadores da história vai ao escritório de Rivière, o chefe de todos, tentar descobrir notícias do marido que enfrentava uma tempestade terrível cujas chances de vencê-la era nula àquela altura, pelo pouco combustível restante. Ambos sabiam, sem saber. Foi o instante súbito para Rivière que se lembrou de uma mãe que perdera o filho bebê e lhe dissera: “O que me faz sofrer são as pequenas coisas, a sua roupinha que encontro por acaso e, se acordo de noite, aquela ternura que apesar de tudo se apodera do meu coração e é agora inútil, como o meu leite…” E Rivière, mirando a esposa do piloto morto, pensou: “Para aquela mulher também a morte de Fabien iria apenas começar amanhã, em cada ato daí em diante vão, em cada objeto. Fabien deixaria lentamente a sua casa. Rivière abafava uma profunda compaixão.”

É dessa percepção que ele concluiu que nós não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido, pois o vazio que nos rodeia faz-se então sentir. Vazio que vem aos poucos, nessas pequenas coisas que não são mais e no entanto permanecem sendo como ausência torturante. Essa perda súbita de sentido todos experimentamos em algum momento da vida, e não apenas uma única vez. Das mais memoráveis para mim foi tê-la visto no olhar de quem considero um segundo pai para mim. Foi quando ele chegava ao velório do meu pai. Acho que de todas as cenas daquele dia, esta foi a que mais ficou impregnada em mim.

Estávamos fora da capela mortuária, eu e meus irmãos, cada qual sozinho, distantes apenas alguns passos um dos outros, mas com um abismo entre e dentro de nós, o abismo da ausência do pai, já inteira, mas ainda pouco sentida. Eu estava sentado num desses bancos de praça e vi meu tio (tampouco era tio de verdade, mas assim o chamei sempre) chegando de braço dado com minha tia. Quando nos viu, acho que o olhávamos com cara de órfãos. Ali foi o momento súbito dele. Aquilo não estava certo, não podia estar certo. Naquele instante, todo sentido o havia abandonado. Vi-o desviar o rosto, fazendo um estalo com a boca como se dissesse “putz”, ou como literariamente Rivière diria: “a morte, ei-la.”

Meu segundo pai morreu nesta semana. Meu “putz” veio em reação à mensagem de celular de minha mãe avisando. Apesar de estar bastante doente, câncer para variar, havia saído do hospital dias antes e achávamos que ainda não seria agora. Mas foi. O velório começou apenas à noite. Durante aquele dia inútil foi inevitável não conter o vazio com milhares de recordações. Como num cortejo fúnebre, vieram toda a infância e adolescência que passei tão próximo dele, pois meu melhor amigo à época era seu filho e vivíamos praticamente um na casa do outro. O futebol de salão aos domingos pela manhã, as viagens, os acampamentos, as festas, as novenas de Natal, e a risada, principalmente a risada dele, sempre contagiante e, para mim, curativa.

Depois veio a vida adulta em que os deveres e obrigações tornam a proximidade mais distante, mas nunca rompida. As caronas na volta da faculdade, depois como meu médico em cujas consultas sempre lembrávamos do passado, e ríamos. Ele nem sabia (está sabendo agora), mas teve papel importante na minha decisão de tentar viver como professor, não mais advogado. Ele havia operado minha hérnia de hiato, mas coisa de um mês depois voltei a sentir os mesmo sintomas da esofagite que deveria estar curada. Ele ficou preocupado e conseguiu que eu fizesse uma endoscopia de emergência. Estava tudo certo fisicamente, não havia nada indicando que houvesse esofagite, hérnia, nada. Então, disse: “é a cabeça, Fran”. E era. E ali eu criei a coragem que me faltava para mudar de vida, ao menos tentar. E tentei, sigo tentando. Obrigado por isso também, tio!

À noite, ao chegar ao velório, vi meus “primos” como eu e meus irmãos no velório do meu pai. Juntos, mas sozinhos, profundamente órfãos, naufragados no vazio que nossos abraços apertados não têm como preencher, não por dentro. Mas talvez as palavras consigam, por isso escrevo. Via-me como Rivière antecipando a fase que começaria a ser vivida no dia seguinte, a fase das pequenas coisas inutilizadas, do vazio que em Vôo Noturno é combatido com a ação de retomar a vida de imediato, apesar da perda. De seguir cumprindo os deveres, as obrigações, ainda que “O objetivo talvez não justifique nada, mas a ação liberta da morte”, como disse Rivière a um subordinado. E é verdade, mas insuficiente. Isso não tem no livro, mas aprendi com as mortes que me visitaram e sei que aos poucos esse vazio será preenchido pela mesma memória que se hoje tortura ao ponto de nos deixar sem o ar para respirar, de tão dolorosa, já está também grávida da eternidade que um dia dará à luz com o nome de saudade.

Ao rezar junto ao seu corpo, mandei à pqp aquele “putz” da súbita falta de sentido. Que dure apenas um instante. Que venha o vazio combatido com as boas lembranças. E por estas eu tinha muito, mas muito a agradecer, inclusive uma que se formava ali, com o presente que o João, aquele “primo-irmão”, recebeu do pai: a lembrança derradeira. Contou-me que no domingo ficaram apenas os filhos e os pais juntos, como era na infância, antes das noras, genros, netos. João me contava, com o olhar perdido para dentro da capela mortuária, do momento em que ficaram apenas ele e o pai conversando enquanto reviam lutas do Mike Tyson. Antes de dormir, meu tio se virou para o filho e fez um sinal de positivo com a mão. No dia seguinte, morreu.

À certa altura do velório, notei de longe meus outros “tios” reunidos perto do corpo, a “turma” toda, como chamamos o grupo (grande) de amigos criado na juventude, alguns desde a infância. Crescemos, os filhos, sendo esses primos-irmãos com que nos apresentamos aos de fora da “turma”. É mais fácil do que tentar explicar de onde nos conhecemos. Seria preciso contar a história de vida de nossos pais. Os primos-irmãos cresceram e a vida foi tornando difícil nos reunirmos como “turma” com a frequência que, tenho a certeza, todos gostaríamos, mas de certa forma enquanto nossos pais seguirem se encontrando estaremos todos juntos.

E eles nunca deixaram de se encontrar. Os homens da “turma”, por exemplo, toda quinta-feira jantam e jogam truco. Cada semana na casa de um. Lembro do quanto meu pai ficava bem-humorado às quintas e eu adorava quando era lá em casa, quando eu não havia ainda casado, porque ficava do quarto escutando as risadas, sempre esperando aquela que me fazia sorrir sempre: a do meu segundo pai. E costumava ser o primeiro a rir. Nas próximas quintas será difícil para os da “turma” sorrirem, salvo para um. Se tem alguém que está sorrindo agora é meu pai. Enfim ele ganhou alguém para formar dupla no truco celeste. A nós que ficamos, resta agradecer porque o que tivemos, o que temos, jamais perderá seu sentido, ainda que a morte faça parecer que o perdemos por alguns momentos, como agora. Ainda assim, mesmo agora, mesmo chorando, dá para cantar mais uma vez, como nas nossas antigas novenas de Natal:

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